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Evitar erros na toma de medicamentos com instruções simples e baseadas na evidência
16 outubro 2024, PATRÍCIA RODRIGUES
Os doentes recebem as instruções posológicas de diferentes formas. Além das orientações facultadas por via oral, seja na altura da prescrição ou na dispensa do medicamento, frequentemente, os doentes recebem também instruções escritas. Estas instruções podem estar no guia de tratamento que acompanha as receitas médicas, nas caixas dos medicamentos ou noutros documentos de apoio à terapêutica. Sejam as instruções fornecidas por via oral ou por escrito, é fundamental que os utilizadores dos medicamentos compreendam corretamente as orientações.
O uso inadequado de fármacos é frequente, pelo que cabe aos profissionais de saúde, tais como médicos, enfermeiros e farmacêuticos, informar e educar os doentes de forma a evitar erros e garantir o uso seguro e eficaz destas terapêuticas.
Neste artigo reúno algumas recomendações baseadas em evidência que melhoraram a compreensão das instruções e minimizam lapsos na toma de medicamentos.
Índice
O problema da baixa adesão
Para a Organização Mundial de Saúde, a adesão terapêutica é o grau ou extensão em que o comportamento da pessoa — em relação à toma da medicação, ao cumprimento da dieta e à alteração de hábitos ou estilos de vida — corresponde às recomendações veiculadas pelos profissionais de saúde. A adesão à terapêutica é fundamental para o correto tratamento das patologias associadas, assim como para evitar efeitos adversos ou toxicidade. Em oposição, baixa adesão compromete os resultados de saúde e aumenta a mortalidade dos doentes. Apesar dos benefícios associados à correta toma dos medicamentos, 50% dos doentes não toma a medicação como prescrito.
A baixa adesão é um problema complexo que se deve a diversos fatores, entre os quais fatores relacionados com o doente, com a terapêutica, com a doença, com os profissionais de saúde e com o sistema de saúde. Exemplos de fatores envolvidos na baixa adesão à terapêutica são a baixa literacia em saúde, a complexidade posológica, politerapia, o estilo de comunicação dos profissionais de saúde e a pouca clareza das instruções posológicas que são facultadas aos doentes.
Os erros na toma de medicação são frequentes
Se, por um lado, o doente pode decidir tomar a medicação de forma diferente ao prescrito ou até descontinuar a terapêutica (não adesão voluntária ou intencional), por outro, podem acontecer esquecimentos ou lapsos não intencionais (não adesão involuntária ou não intencional).
O Institute of Medicine concluiu que uma das principais causas de erros na toma dos medicamentos é a má compreensão das instruções, causando falhas não intencionais no uso do medicamento. Num estudo que incluiu 395 doentes e avaliou a compreensão de instruções de toma dos medicamentos, 46,3% dos doentes não conseguiu ler e descrever corretamente uma ou mais instruções de prescrição. Embora esta dificuldade seja mais comum em doentes com baixa literacia, 37,7% dos doentes com boa literacia compreenderam mal as instruções. Por outro lado, dos doentes que acertaram na instrução “tome dois comprimidos por dia, duas vezes por dia, por via oral”, um terço não foi capaz de demonstrar o número correto de comprimidos a tomar no período de um dia.
Outro grupo que também enfrenta dificuldades na interpretação de instruções de prescrição são os cuidadores. Uma revisão sistemática apurou que 12 a 92,7% dos cuidadores enganam-se na administração dos medicamentos, sendo os erros relacionados com a dosagem, a via de administração ou o medicamento administrado. Por sua vez, os pais também estão em risco de se enganarem nas doses de medicamentos que dão aos seus filhos, tal como foi demonstrado por um estudo que incluiu 200 bebés e crianças, em que 51% recebeu uma dose incorreta de acetaminofeno ou ibuprofeno, dada pelos pais.
SAIBA MAIS NO ARTIGO: Comunicação centrada na pessoa: a essência do cuidado em saúde
Instruções pouco claras atrapalham a compreensão
Como vimos, a interpretação das instruções de medicamentos motiva erros na toma dos mesmos. Estas falhas na compreensão devem-se não só a fatores relacionados com os doentes, mas também com fatores relacionados com as próprias instruções.
A este respeito, não existe uniformização das orientações dadas aos doentes, o que gera uma variabilidade que em nada contribui para a toma correta do medicamento. A esta diversidade de instruções acresce a complexidade da informação veiculada. Termos farmacêuticos, frequências, dosagens, doses máximas e informações por vezes colocadas de forma abreviada ou com siglas, exigem que o utilizador do produto descodifique as diretrizes, o que amplia a possibilidade de erros e compromete a adesão à terapêutica.
Abaixo podemos ver alguns exemplos de guias de tratamento em que a instrução requer, por exemplo, interpretar abreviaturas, frações e frequências de toma.
Assumir que o doente saberá interpretar corretamente as indicações posológicas é uma parte do problema que é necessário resolver, não sendo esse o foco deste artigo. A outra parte é saber como providenciar instruções simples e explícitas que contribuem para diminuir erros e promover maior adesão à terapêutica — encontra essa informação nas secções seguintes.
Boas práticas para dar instruções e evitar erros na toma de medicamentos
Uma revisão sistemática, publicada em 2022, analisou a robustez das estratégias que melhoraram a compreensão das instruções de toma dos medicamentos. Com base nos dados encontrados, os autores propuseram boas práticas com diferentes níveis de recomendação:
- Nível I: altamente recomendado
- Nível II: promissor, mas são necessários mais estudos
- Nível III: são necessários mais estudos
Abaixo descrevo as recomendações de nível I e II. Recomendo a leitura do documento para obter uma visão mais aprofundada de todas as propostas.
Recomendação 1.
Em vez de tomas por dia, referir os períodos do dia para indicar os momentos da toma do medicamento (nível I)
Esta recomendação segue a proposta do Horário Universal de Medicamentos (tradução de Universal Medication Schedule), feita pelo Institute of Medicine. O Horário Universal de Medicamentos recorre aos períodos do dia (manhã, meio do dia, tarde, noite) para designar quando o medicamento deve ser tomado.
EXEMPLO
Em vez de:
Prefira:
Tomar um comprimido duas vezes por dia
Tomar um comprimido de 12 em 12 horas
Tomar 1 comprimido de manhã e 1 comprimido à noite
De referir que algumas terapêuticas exigem um cumprimento de horários mais apertado, como no caso dos antibióticos, pelo que, em vez de indicar o momento do dia, pode ser necessário especificar a hora da toma.
Recomendação 2.
Em vez de tomas por dia, usar as refeições para indicar os momentos da toma do medicamento (nível II)
Em linha com a orientação anterior, utilizar as refeições para marcar o momento da toma dos medicamentos é uma medida eficaz para melhorar a compreensão das instruções e evitar erros ou lapsos. Esta opção está também alinhada com o Horário Universal de Medicamentos: neste caso, em vez de se indicar os perídos do dia, refere-se as refeições.
EXEMPLO
Medicamento |
Pequeno-almoço |
Almoço |
Lanche |
Jantar |
Ao deitar |
Lisinopril |
1 comprimido |
|
|
|
|
Metformina |
1 comprimido |
|
1 comprimido |
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Assim como na recomendação anterior, podem ser adicionadas as horas de cada refeição/período. Os horários das refeições da tabela acima são exemplificativos e devem ser ajustados caso a caso. Por exemplo, as pessoas que trabalham por turnos podem fazer as suas refeições a horas diferentes do indicado.
Recomendação 3.
Usar imagens validadas (nível II)
O recurso a imagens, como pictogramas ou ícones, ajuda a compreensão das instruções medicamentosas. Exemplos de imagens frequentemente usadas são ícones a representar as refeições, assim como as partes do dia. Os estudos incluídos nesta revisão utilizaram pictogramas validados da Farmacopeia dos Estados Unidos.
Além de usar imagens que já foram estudadas para este efeito, os autores salientam a importância de adaptar os recursos visuais à população-alvo. Acima de tudo, a imagem tem de ser compreendida pela comunicade que vai receber as instruções.
Recomendação 4.
Usar imagens que permitem visualizar as doses dos medicamentos líquidos (nível I)
De acordo com esta revisão, usar imagens simples com os instrumentos de medição e a representação do volume é uma estratégia eficaz para indicar as quantidades de medicamentos líquidos. Neste caso, em vez de uma instrução como “10 ml de manhã e à noite”, deve existir, adicionalmente ao texto, uma imagem ilustrativa do dispositivo de medição com 10 ml de medicamento.
EXEMPLO
Em vez de:
Prefira:
Tomar 10 ml duas vezes por dia
Tomar 10 ml de manhã e à noite
(imagem exemplificativa)
Recomendação 5.
Fornecer tabelas com as instruções para organizar a informação e torná-la mais visual e fácil de consultar (nível II)
Organizar a informação dos medicamentos em tabela, particularmente em doentes polimedicados, já é uma prática habitual. Este estudo reforça a eficácia desta medida na compreensão das instruções, lembrando que pode ser utilizada mesmo nos casos em que a pessoa toma um só medicamento, conforme o exemplo abaixo.
EXEMPLO
Manhã |
Meio do dia |
Tarde |
Noite |
1 comprimido |
|
1 comprimido |
|
Estas tabelas podem conter mais informações, tal como advertências quando ao tipo de alimentos/bebidas a evitar na toma do medicamento.
Recomendação 6.
Usar tabelas com texto explicativo (nível II)
Adicionalmente à orientação anterior, complementar a tabela com textos explicativos pode melhorar ainda mais a compreensão. Assim, a instrução seria um breve texto e uma tabela.
EXEMPLO
Tome:
1 comprimido de manhã
1 comprimido à noite
Manhã |
Meio do dia |
Tarde |
Noite |
1 comprimido |
|
1 comprimido |
|
Recomendação 7.
Usar instruções de forma visual quando estas são dirigidas a populações com baixa literacia em saúde ou a populações que não falam/são pouco fluentes na língua oficial (nível II)
Exemplos de instruções apresentadas de forma visual são as referidas acima: tabelas e imagens.
Se as instruções forem para pessoas pouco proficientes ou não falarem a língua oficial, outra possibilidade é a facultar instruções traduzidas.
Orientações de literacia em saúde para melhorar a compreensão das instruções dos medicamentos
As orientações de literacia em saúde, nomeadamente de linguagem clara, somam às acima descritas. Assim, preferir linguagem simples pode evitar erros e garantir o uso seguro do medicamento. Algumas orientações são:
- Evitar o uso de abreviaturas (em vez de “cp” escreva “comprimido”);
- Evitar o uso de frações (em vez de “½ comprimido”, escreva “meio comprimido”;
- Escrever a informação numérica utilizando os respetivos algarismos, e não por extenso (em vez de “dois”, escreva “2”);
- Simplificar o jargão médico/farmacêutico.
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Conclusão
A complexidade e a variabilidade das instruções de medicamentos são fatores que contribuem para a ocorrência de erros na sua administração e para a baixa adesão terapêutica. As recomendações baseadas em evidências, como a utilização de períodos do dia ou refeições para indicar os momentos da toma, o uso de imagens explicativas e a organização da informação em tabelas, têm o potencial de simplificar a compreensão e, consequentemente, reduzir os erros. Tais práticas são essenciais para garantir que os doentes utilizam os medicamentos de forma correta, promovendo melhores resultados de saúde e diminuindo os riscos associados ao uso inadequado destes produtos.
A comunicação eficaz sobre medicamentos é uma competência crítica para os profissionais de saúde e impacta diretamente os resultados e a segurança do doente.
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