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Por que somos pouco claros na comunicação com o doente?
30 abril 2025, PATRÍCIA RODRIGUES

Comunicar com clareza permite que as pessoas a quem nos dirigimos compreendam bem e com facilidade a nossa mensagem.
Ao invés, a falta de clareza alimenta mal-entendidos, confusões e eventuais conflitos. Se as pessoas interpretam as nossas palavras de forma diferente da intenção com que as proferimos, arriscamos perder a confiança e a credibilidade que depositaram em nós.
No contexto da saúde, a clareza é particularmente importante, pois promove a correta compreensão da informação, assim como a construção de uma relação sólida entre profissionais de saúde e utentes. Uma comunicação clara envolve os utentes nos cuidados, reforça a literacia em saúde e promove resultados de saúde positivos. Ainda assim, a falta de clareza é frequente, tanto na comunicação oral, como nos textos informativos e educativos de saúde.
Neste artigo apresento uma sistematização dos fatores que contribuem para a falta de clareza na comunicação com utentes, resultado da minha observação, reflexão, estudo e prática. Agrupei os fatores em quatro categorias:
Índice
É uma lista não exaustiva, mas espero que sirva de ponto de partida para mitigar lapsos de clareza que comprometem o cuidado.
1. Formação Académica e Cultura Profissional
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Foco no domínio científico durante a formação académica
Desde o início da formação académica, os estudantes dos cursos de saúde são expostos a uma terminologia técnica extremamente rigorosa. Durante o percurso formativo, é exigido que compreendam conceitos complexos e usem uma linguagem padronizada, para, dessa forma, garantir a precisão e a uniformidade na comunicação entre profissionais. Tal esforço leva a uma automatização da linguagem técnica, que passa a ser quase a “língua-mãe”.
Além disso, os planos curriculares não exploram, ou exploram pouco, as dimensões comunicacionais e relacionais. Como resultado, o recém-formado fica muito competente no domínio científico, e pouco capaz de comunicar esse conhecimento ao público não-especialista (doentes, familiares, cuidadores e público).
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Bolha da linguagem entre pares
A linguagem científica não é apenas reforçada durante a faculdade, também é ao longo da atividade profissional. Este código linguístico é repetido nas conversas com colegas, em relatórios, em artigos, em congressos, em formações…
A necessária normalização desta terminologia na comunicação entre pares, pode levar os profissionais a usá-la também na interação com o público, sem confirmar a compreensão dos conceitos. Este ponto está também relacionado com a Maldição do Conhecimento, que descrevo mais abaixo.
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Linguagem técnica como selo de competência
Algumas pessoas podem ter a perceção de que o uso de terminologia técnica transmite maior conhecimento e, desta forma, mais profissionalismo e competência do profissional de saúde. Esta atitude, creio, não é desconstruída ao longo da formação académica e percurso profissional e pode ter uma causa mais profunda, que descrevo no ponto seguinte.
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Crença na autoridade da linguagem técnica
Nos mais diversos contextos, a linguagem é usada como marcador hierárquico, ou seja, como uma demonstração de autoridade. Em saúde não é diferente: a nomenclatura técnica pode ser usada, ainda que de forma pouco consciente, para afirmar as diferenças (de estatuto) entre o especialista e o não-especialista. Esta postura reduz severamente a clareza da comunicação, exclui o utente da interação, e inibe-o de fazer perguntas e de participar nos cuidados.
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Modelo de comunicação desatualizado
Alguns profissionais de saúde usam, sem perceber, modelos de comunicação antigos, que colocam o profissional como o detentor do saber e o doente como mero recetor passivo da informação e do cuidado. Neste tipo de abordagem, o foco está em transmitir dados, não em garantir a compreensão. Além disso, também acontece o profissional dar informação pouco adaptada às necessidades da pessoa e não averiguar a compreensão da mensagem.
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2. Fatores Cognitivos e Psicológicos
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Maldição do conhecimento
Quando alguém domina profundamente um tema, é comum perder a noção de como é não saber tanto. Para quem sabe muito, tudo é óbvio, de conhecimento geral, básico. Porque assim é para o especialista, este presume que também é para o público e subestima a complexidade da informação — esta é a maldição do conhecimento.
Assumindo que certos conceitos são evidentes, o profissional de saúde não adapta a informação às necessidades e ao nível de conhecimento do utente, omite detalhes importantes (a tal informação que todos sabem) e, desta forma, compromete a clareza.
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Medo de simplificar demais
Alguns profissionais temem que, ao simplificar a linguagem, a mensagem perca precisão ou rigor científico. Além disso, existe o receio de que o público interprete a simplificação como uma forma de “tratar o utente como uma criança”. Estas são dúvidas legítimas, mas aqui fica uma distinção essencial: simplificar não é simplista, é adaptar a linguagem à pessoa e ao contexto — é tornar acessível.
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Presumir o nível de literacia do público
É comum os profissionais de saúde sobrestimarem os conhecimentos que as pessoas têm sobre saúde, exames e tratamentos, ou seja, sobre os níveis de literacia em saúde. Estas suposições levam muitas vezes a explicações que partem de conhecimentos que o doente não tem.
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Desvalorização inconsciente da comunicação clara
Alguns profissionais acreditam, ainda que de forma inconsciente, que o mais importante é a competência técnica: diagnosticar, tratar, resolver. Por isso, a comunicação é vista como algo “acessório” ou “secundário”, e não como uma ferramenta essencial para o cuidado. Esta visão é reforçada pela ausência de currículos robustos em comunicação durante o percurso formativo.
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Falta de auto-observação e reflexão sobre a comunicação
Um dos obstáculos à clareza na comunicação entre profissionais de saúde e utentes é a escassa prática de auto-observação — isto é, a atenção consciente à forma como comunicamos. Que palavras usamos? Que expressões fazemos? Como é o tom de voz? Falamos rápido, sem dar tempo da outra pessoa assimilar a informação e formular dúvidas? Somos empáticos?
Refletir sobre a prática clínica é natural para o profissional de saúde: O que fiz bem? O que posso melhorar? Onde estão as minhas lacunas? Já refletir sobre as competências de comunicação é menos habitual. E sem esta observação e reflexão, a repetição de erros é inevitável.
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Resistência à mudança
Mesmo quando reconhecemos o que podemos melhorar, a resistência à mudança bloqueia-nos. Isto não é sinal de desinteresse ou desleixo — é uma característica humana!
Essa resistência pode surgir por vários motivos: medo de sair da zona de conforto, hábitos muito enraizados, falta de formação em comunicação, falta de condições no dia a dia que facilitem a prática da comunicação clara (exploro este tópico na categoria seguinte), ou alguma das razões já enunciadas. Talvez exista também o receio de que mudar a comunicação altere a identidade profissional.
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3. Fatores Contextuais e Organizacionais
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Pressão do tempo e consultas curtas
Na prática clínica, o tempo é um recurso precioso. Consultas curtas e agendas lotadas levam os profissionais a adotarem uma abordagem rápida e eficiente, o que nem sempre favorece a clareza.
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Sobrecarga de trabalho
Muitos profissionais de saúde trabalham em ambientes de grande pressão, com agendas cheias, interrupções constantes e múltiplas tarefas em simultâneo. Esta sobrecarga mental dificulta a atenção plena à comunicação. Assim, nestes casos tendemos a falar mais depressa, a usar termos técnicos, a dar explicações menos cuidadosas e a não confirmar a compreensão. Não é falta de vontade — é um reflexo natural do cansaço e da necessidade de cumprir todas as exigências do dia.
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Falta de materiais de apoio em linguagem clara
Muitas instituições de saúde ainda não disponibilizam materiais escritos em linguagem clara — como folhetos, vídeos ou artigos. Sem estes apoios, o profissional fica sozinho na (nem sempre fácil) tarefa de adaptar a informação.
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Prioridades institucionais desalinhadas
Em muitas organizações de saúde, as métricas valorizadas são o número de consultas, o tempo de consulta, os procedimentos realizados — e não necessariamente a qualidade da comunicação ou a experiência do doente. Este desalinhamento de prioridades transmite a mensagem de que comunicar de forma cuidadosa é um “luxo”. Se a organização define as prioridades desta forma, é difícil ao profissional atuar de forma diferente.
4. Fatores Linguísticos
Os aspetos que abordei anteriormente levam a à falta de clareza das palavras. Usando a metáfora do iceberg, podemos dizer que os fatores anteriores estão a zona submersa e os fatores linguísticos na zona visível.
A este respeito, alguns fatores que comprometem a clareza da comunicação são:
- Uso excessivo de jargão
- Uso de palavras pouco precisas
- Falta de concisão (isto é, discurso ou texto muito palavroso)
- Preferência por frases longas e complexas
- Uso de abstrações e metáforas pouco claras
- Perguntas fechadas que bloqueiam o diálogo
- Uso de duplas negativas
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Conclusão
A falta de clareza é multifatorial. Neste artigo descrevi fatores relacionados com a formação académica e cultura profissional; fatores cognitivos e psicológicos; fatores contextuais e organizacionais; e fatores linguísticos.
Para superar estes desafios é necessário um compromisso contínuo e ações longitudinais — e não pontuais. Algumas soluções possíveis são atualizar os currículos académicos, criar uma cultura de comunicação clara nas equipas e instituições, disponibilizar formações nas várias vertentes da comunicação e criar verdadeiras oportunidade de reflexão e melhoria.
Ao comunicar com mais clareza, os profissionais não só promovem a compreensão, como também fortalecem a relação de confiança e melhoram a satisfação, segurança e desfecho clínicos dos utentes.
If you can’t communicate, it doesn’t matter what you know.
— Chris Gardner
The goal of communication is to be understood.
— Chris Yeh
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