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Ambiguidade na comunicação em saúde: inimigo ou aliado?
15 fevereiro 2025, PATRÍCIA RODRIGUES

A linguagem é permeada por espaços ambíguos e vagos que podem transformar uma mensagem aparentemente simples numa fonte de múltiplas interpretações. Neste artigo exploro o que é ambiguidade, como se diferencia da vagueza e como impacta a compreensão e os comportamentos em saúde. Por fim, enumero algumas vantagens da ambiguidade na comunicação em saúde e termino com uma breve reflexão filosófica.
Índice
O que é ambiguidade?
Do ponto de vista linguístico, a ambiguidade é uma qualidade do texto escrito ou falado que permite várias interpretações. A ambiguidade pode verificar-se a três níveis:
- Ambiguidade lexical: ocorre quando uma palavra têm vários significados. Por exemplo, “mente” pode ser um nome (“Ele tem uma mente brilhante”) ou um verbo (“Ele mente quando diz que estava em casa”).
- Ambiguidade sintática: surge quando a estrutura da frase permite mais do que uma interpretação. Por exemplo, na frase “A Ana explicou o procedimento à Maria e à sua filha” não fica claro se “a sua filha” se refere à Ana ou à Maria.
- Ambiguidade discursiva: ocorre quando, do mesmo enunciado, se podem fazer várias inferências — um fenómeno algo comum nos textos legislativos.
Ambiguidade e vagueza: qual é a diferença?
Embora os termos “ambiguidade” e “vagueza” sejam, por vezes, usados de forma intercambiável, eles referem-se a qualidades distintas do discurso. Enquanto os termos ambíguos têm mais do que um significado, sendo todos precisos, os termos vagos têm um significado impreciso ou indeterminado. Por exemplo, a instrução “Mantenha a sala fria” é vaga, pois não sabemos a partir de que temperatura algo é quente, frio ou ameno. Outros exemplos de palavras vagas são as palavras como alto, baixo, bom, mau, muito, pouco.
A vagueza também pode surgir quando uma expressão reduz o nível de precisão da informação. Considere a seguinte frase: “A contratação pode ser um possível contributo para aumentar a produtividade da empresa”. A expressão “pode ser um possível contributo” não permite determinar se a contratação vai, não vai, ou em que extensão vai, aumentar a produtividade.
Tal como a ambiguidade, a vagueza é uma característica inerente às línguas. De acordo com Ricardo Santos: “Na linguagem natural há poucas palavras precisas, a grande maioria é vaga.”
Papel da ambiguidade e da vagueza na linguagem e na comunicação
Uma língua perfeita, sem ambiguidades nem indefinições, é um ideal inatingível — e, de certo modo, indesejável. Alguns estilos discursivos exploram essa característica de forma intencional, como é o caso dos textos humorísticos e publicitários.

Por outro lado, alguns autores consideram que a ambiguidade torna a linguagem mais eficiente, pois permite reutilizar palavras e expressões em diferentes contextos, como consequência dos seus diferentes significados. Além disso, poupa o comunicador de longas explicações necessárias para eliminar interpretações alternativas.
De modo semelhante, a vagueza também facilita a comunicação. Ao dizermos que “A Ana tem o cabelo claro”, sem especificar o respetivo pantone (isto é, o código de cor que identifica com precisão uma determinada cor), abreviamos a interação ao essencial.
Contudo, a ambiguidade e a vagueza podem impedir uma comunicação eficaz, uma vez que geram dúvidas, equívocos e incertezas. Um dos contextos em que tal acontece é na comunicação em saúde.
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Impacto da ambiguidade e vagueza na compreensão da informação de saúde
Uma das consequências da ambiguidade e vagueza são as falhas na compreensão da informação, levando a uma comunicação ineficaz. Vejamos os seguintes exemplos:
- “A biópsia consiste em retirar uma amostra de tecido.”
A informação é ambígua, pois a palavra tecido pode significar tecido biológico e pode também significar roupa. Se quem recebe esta comunicação não estiver minimamente familiarizado com a terminologia médica, poderá entender mal o procedimento. - “O Miguel partiu esta manhã.”
É uma expressão ambígua, pois pode significar que o Miguel recebeu alta (e por isso já não se encontra no hospital), ou que foi transferido para outro local; pode ainda significar que faleceu. - “A baixa médica deve ser entregue nos serviços clínicos até ao dia 5 do próximo mês.”
A instrução é vaga e ambígua. É vaga, porque não indica quem tem de entregar o documento; é ambígua porque a expressão “até ao dia 5” pode ser interpretado como incluindo ou excluindo o dia 5. - “Tomar um comprimido duas vezes por dia.”
Neste caso, em que momentos do dia deve a pessoa tomar a medicação? Ao pequeno-almoço e ao almoço? Ao almoço e ao jantar? Sem especificar horários, a pessoa pode interpretar de diferentes formas e adotar a posologia errada. - “Consuma álcool com moderação.”
Onde começa e onde termina a moderação no consumo? Esta instrução é vaga.
A ambiguidade e a vagueza nem sempre geram confusão no recetor da mensagem. Muitas vezes, as pessoas são capazes de inferir o significado correto a partir do contexto ou de outras pistas textuais. Contudo, presumir que a outra pessoa conseguirá fazer a leitura correta da informação é o caminho para ocorrerem falhas na comunicação.
Impacto da ambiguidade no comportamento em saúde
Considere, por exemplo, a informação sobre riscos e fatores de risco em saúde. O risco é, por natureza, uma probabilidade e não um dado absoluto — é ambíguo. O impacto desta ambiguidade foi avaliado num estudo americano, que demonstrou que a ambiguidade percebida nas recomendações de prevenção do cancro estava inversamente associada tanto à crença na possibilidade de prevenção, quanto à adesão aos comportamentos modificadores de risco. Por outras palavras, a ambiguidade reduz a perceção de que o cancro pode ser e prevenido e reduz a adesão às recomendações.
Para exemplificar esta fonte de ambiguidade, pense na seguinte informação: “Usar protetor solar contribui para a prevenção do cancro da pele”. Como não podemos dizer, em rigor científico, que o protetor solar previne o cancro de pele em 100% dos casos, optamos pela formulação “contribui para prevenir”, resultando numa frase ambígua. Um leitor mais atento poderá pensar: “Afinal, previne ou não? O que significa contribui para a prevenção? Não é 100% certo de que previna o cancro?”. Se a pessoa não tiver a certeza do resultado de um comportamento, poderá não adotar esse comportamento.
Outra fonte de ambiguidade, são as informações contraditórias que as pessoas encontram o vasto mundo da web. A internet está repleta de conteúdos de qualidade variável, desde fontes científicas credíveis até opiniões não fundamentadas. Diante tantas interpretações sobre um mesmo tema, o recetor pode não dispor de critérios suficientes para identificar a informação mais adequada, podendo optar por escolhas equivocadas ou sentir-se incapaz de decidir. Portanto, a ambiguidade pode persistir mesmo quando há ampla disponibilidade de informação.
A incerteza científica como uma fonte adicional de ambiguidade
A ciência está em constante evolução. O que hoje é considerado verdade, amanhã pode ser refutado. Por isso, os limites do conhecimento atual — ao que chamamos incerteza científica — geram ambiguidade, particularmente nas pessoas que não estão familiarizadas com o método científico.
Assistimos a este fenómeno durante a pandemia por COVID-19. No início da crise sanitária, havia muitas incertezas sobre a natureza do vírus, modos de transmissão e eficácia das medidas preventivas. À medida que novas evidências surgiram, as recomendações foram ajustadas, o que gerou perceções contraditórias.
Um exemplo marcante foi a evolução das orientações sobre o uso de máscaras. No início da pandemia, o uso de máscaras foi desvalorizado; mas, à medida que se acumularam evidências sobre a transmissão do vírus, passou a ser obrigatório. Este processo de atualização do conhecimento, natural em ciência, gerou desconfiança e contestação. Neste caso, a ambiguidade na comunicação surgiu porque as mensagens iniciais pareciam definitivas, quando, na verdade, estavam baseadas no conhecimento disponível naquele momento — algo que não foi devidamente explicado à população.
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Existe espaço para a ambiguidade na comunicação em saúde?
Os argumentos que apresentei até agora, colocam a ambiguidade e vagueza como um problema a evitar, pois levam a falhas na compreensão e influenciam negativamente a decisão e o comportamento em saúde. Contudo, em algumas situações, a ambiguidade pode oferecer vantagens.
Uma delas é a flexibilidade na interpretação, permitindo que os doentes adaptem as recomendações às suas circunstâncias específicas. Por exemplo, a orientação “pratique atividade física regularmente” pode ser interpretada de acordo com as capacidades e preferências do indivíduo.
Outra vantagem é a redução do impacto emocional: em situações delicadas, uma linguagem eufemística — por isso, ambígua —pode ser utilizada para comunicar más notícias de forma mais sensível, evitando o choque inicial.
Outra ainda é a adaptação cultural da mensagem. Em contextos multiculturais, a ambiguidade pode ajudar a evitar interpretações que possam ser culturalmente inadequadas ou ofensivas, facilitando a comunicação com diferentes públicos.
Outro olhar sobre o efeito da ambiguidade na comunicação em saúde
A ambiguidade da informação de saúde e o seu efeito na compreensão e no comportamento são, de certa forma, o lado prático da questão. No entanto, existe um outro lado da ambiguidade, mais filosófico, que afeta a prática médica de uma forma mais ampla.
No seu artigo “Ethics of ambiguity”, Ronald Domen enumera os vários aspetos da prática de Medicina em que a ambiguidade está presente. Dúvidas sobre o diagnóstico, incertezas quanto à melhor abordagem terapêutica, conflitos entre os resultados clínicos e os objetivos dos doentes, assim como investigação que deixa mais questões do que respostas, são alguns desses exemplos. De certa forma, parece impossível dissociar a ambiguidade, e os seus desafios, dos cuidados de saúde.
Contudo, adotando agora uma perspetiva mais humanista, percebemos que a ambiguidade é a possibilidade de existirem diferentes olhares sobre uma mesma informação. Assim, a ambiguidade não nos deixa cristalizar em verdades absolutas: ao invés, permite flexibilidade de pensamento e convida à leitura das situações sob outras perspetivas. Dessa forma, a busca pela verdade passa a ser coletiva, e não individual.
Na relação entre o profissional de saúde e o doente, reconhecer a ambiguidade inerente aos cuidados de saúde significa, entre outras coisas, reconhecer os limites do nosso conhecimento e aceitar a perspetiva do doente. Tal exige empatia, boas competências de comunicação e respeito pela autonomia da pessoa. Portanto, é a ambiguidade, na sua dimensão mais filosófica, que abre espaço para valorizar a individualidade e a humanidade partilhada, valores fundamentais para o sucesso de um cuidado centrado na pessoa.
Conclusão
A ambiguidade e a vagueza são inerentes à linguagem e, embora possam agilizar a comunicação e permitir adaptações contextuais, a sua presença na área da saúde exige cuidado redobrado. É importante que os profissionais de saúde estejam atentos às possíveis interpretações equivocadas decorrentes de uma comunicação ambígua, tanto na forma oral quanto na escrita. Por outro lado, abraçar a ambiguidade inerente aos cuidados de saúde permite-nos acolher outras verdades e colaborar — comunicar — na busca de um sentido comum.
We think that it’s impossible to act unless you’re certain that you’re right; but certainty about yourself is also the quickest road to fanaticism … Now, uncertainty—the sense that not only you don’t know the truth but that many complex issues are irresolvably ambiguous—is sometimes the most productive way of allowing you to act while at the same time respecting that others are not going to accept your view, approve your action or follow your example. It produces a tentativeness that permits you to see many things from many points of view. Which is, I believe, the best definition of objectivity.
Alexander Nehamas
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