Jargão: sim ou não?
Como ultrapassar o obstáculo da linguagem técnica e transmitir mensagens de saúde simples e claras.
Publicação: 24 agosto 2021

Antes de falar sobre o jargão na saúde, quero apresentar o caso do Francisco. O Francisco é enfermeiro recém-licenciado e optou por ser profissional independente. Como tem de abrir atividade na Autoridade Tributária e na Segurança Social, começou a ler o “Guia Prático: Novo Regime dos Trabalhadores Independentes”. Com uma persistência notável, lá chegou à página 14 onde se lê:
“A obrigação declarativa não se aplica aos Trabalhadores Independentes abrangidos pelo regime de contabilidade organizada, cujo rendimento relevante corresponde ao valor do lucro tributável.
Exceto se, notificados da base de incidência contributiva que lhes é aplicável, por força do valor do lucro tributável apurado no ano civil imediatamente anterior, requererem, no prazo que for fixado na respetiva notificação, que lhes seja aplicado o regime de apuramento trimestral do rendimento relevante, ficando sujeitos à obrigação declarativa trimestral a partir de janeiro.”
Ficou confuso(a)? Precisou de ler várias vezes e mesmo assim ficou mesmo sem perceber?
Escolhi propositadamente este exemplo fora da área da saúde, para que olhe para o problema da terminologia técnica do ponto de vista do público que não é especialista no assunto. O Francisco domina temas de saúde, mas de Segurança Social não percebe nada!
De igual forma, o mesmo acontece quando pessoas fora do círculo da saúde leem ou ouvem informação que não está adaptada ao público leigo. Em muitos casos, tal deve-se à abundância do jargão nas comunicações de saúde.
O que é o jargão?
De acordo com o dicionário Infopédia, a palavra “jargão” significa:
- Linguagem adulterada ou incompreensível;
- Linguagem alterada, geralmente em resultado da incorporação de termos de outros idiomas;
- Linguagem específica utilizada por setores profissionais ou sociais, gíria;
- Linguagem codificada de determinados grupos, utilizada com o objetivo de evitar a sua compreensão por parte de elementos exteriores a esses grupos, gíria.
Neste artigo, jargão diz respeito aos termos técnicos que encontramos em muitas comunicações e contextos de saúde.
Apresentar o caso do jargão em saúde
Cada área de especialização tem o seu léxico e cultura próprios. Para quem está fora deste círculo de conhecimento, a informação parece encriptada. Assim, quando o especialista quer passar uma mensagem para o público leigo, a terminologia técnica é um obstáculo que dificulta a comunicação entre as duas partes.
De acordo com o inquérito de literacia em saúde em Portugal, em linha com a média europeia, cerca de metade da população tem dificuldade em aceder, compreender, avaliar e aplicar informação de saúde nas suas decisões diárias. Usar o jargão para falar com o cidadão comum, principalmente com pessoas que têm baixa literacia e não entendem bem as mensagens de saúde, contribui para aumentar o fosso que separa os profissionais de saúde e o doente, as instituições de saúde e o cidadão. A linguagem técnica não é eficaz a transmitir informação de saúde para o público não especialista nem resolve o problema da baixa literacia em saúde — só o agrava.
Consequências do uso excessivo de jargão em saúde
O uso excessivo e desadequado do jargão médico tem consequências nefastas, em particular na comunicação com o doente. Pode motivar erros de medicação, porque o doente não compreende bem como deve tomar o medicamento, ou levar ao mau uso de dispositivos médicos. Pode dificultar a navegação nos serviços de saúde e fazer coisas tão simples como escolher o médico ou marcar um exame.
Por outro lado, aproveitando o contexto COVID19 em que nos encontramos, mensagens muito técnicas impedem a compreensão da informação e a adoção dos comportamentos que protegem a Saúde Pública.
Para terminar o leque de exemplos, a complexidade da informação pode desmotivar as pessoas a cuidarem de si mesmas, alienando-as da sua responsabilidade, que é transmitida para o profissional de saúde.
Vencer o jargão em saúde com a linguagem clara
Estamos a usar linguagem clara quando a comunicação é compreendida a primeira vez que é lida ou ouvida pela audiência. Ao adequar as palavras e a estrutura da informação, as pessoas terão mais facilidade em encontrar a informação, compreendê-la e usá-la de acordo com as suas necessidades.
As técnicas da linguagem clara aplicam-se a todas as áreas de conhecimento, mas são particularmente úteis na saúde, nomeadamente na literacia em saúde. De facto, o uso de linguagem clara em saúde contribui para aumentar a literacia em saúde, sendo considerada uma competência-chave para os profissionais de saúde.
A linguagem clara faz parte das Precauções Universais de Literacia em Saúde, definidas pela Agency for Healthcare Research and Quality, que são as seguintes:
- Simplificar a comunicação e confirmar a compreensão do paciente para minimizar o risco de falha na comunicação;
- Tornar o ambiente do consultório e do sistema de saúde mais fáceis de navegar;
- Apoiar os pacientes nos esforços de melhoria da sua saúde.
A primeira precaução refere a simplificação da informação, tornando-a mais acessível aos utentes dos serviços de saúde — isto é conseguido aplicando as técnicas da linguagem clara.
Estratégias da linguagem clara para ultrapassar o jargão
Das diversas orientações que a linguagem clara nos oferece, apresento a seguir as que se relacionam com o uso do jargão.
- Dar informação centrada na pessoa.
Para comunicar de forma eficaz em saúde é necessário conhecer a sua audiência. Quem é(são) a(s) pessoa(s) a quem se dirige? Qual o seu nível de literacia em saúde? Que necessidades têm? O que já sabe?
Ao conhecer as pessoas a quem se dirige conseguirá identificar o que é ou não jargão para esse grupo e assim ajustar a sua comunicação. Além disso, conseguirá selecionar melhor a informação a transmitir, conforme refiro de seguida.
- Selecionar a informação realmente importante.
Nem sempre a informação que damos interessa ou é relevante para o público. Evite factos que possam ser mal interpretados ou que possam ter pouco impacto na compreensão da mensagem central, muitas vezes esses dados são puramente científicos e apenas contribuem para a entropia mental de quem recebe a informação.
- Evitar termos que são usados dentro da comunidade científica.
Nas comunicações com o público, substitua as palavras que fazem parte do dicionário médico por outras, mais comuns e fáceis de compreender. Caso a caso, tendo em conta o público em questão, pode incluir alguns desses termos, mas assegure-se de que a sua audiência está familiarizada com eles.
- Caso seja realmente necessário usar o termo técnico, explicar o seu significado.
Em alguns casos, o uso do termo técnico não é apenas importante como também necessário, mesmo quando se dirige ao público não especialista. Quando o público-alvo vai encontrar essa palavra ou expressão ao longo do seu percurso clínico, usá-la tem uma componente educativa e capacitadora de que não devemos fugir. Por exemplo, colonoscopia, mamografia, quimioterapia, entre outros, são nomenclaturas que têm de ser usadas em oncologia.
No entanto, é importante garantir que estes conceitos são devidamente compreendidos. Para tal explique o conceito de forma simples, usando palavras comuns e conhecidas; use comparações familiares à sua audiência e, se fizer sentido no contexto particular da sua comunicação, em vez de explicar o conceito, demonstre-o no contexto de vida do seu público-alvo.
- Evitar as siglas e acrónimos.
As siglas e os acrónimos também são considerados jargão. Na sua grande maioria, não são amplamente conhecidos e, muitas vezes, podem ter vários significados. Evite-os.
- Usar sempre palavras familiares para a audiência.
Algumas palavras, não sendo termos técnicos, fazem parte do léxico médico. Contudo, são pouco usadas ou até desconhecidas por muitas pessoas, por isso também devem ser evitadas. Por exemplo, em vez de dizer descontinuar, opte por parar; em alternativa a isento de, escolha sem; em vez de disfunção, diga problema.
Iniciativas para combater o jargão na saúde
Nos Estados Unidos da América, com a determinação do Plain Writing Act, em 2010, as agências federais americanas ficaram obrigadas a utilizar linguagem clara nas comunicações com o cidadão. Embora o uso ainda não esteja massificado conforme a legislação estabelece e os defensores da linguagem clara defendem, muitas instituições, incluindo de saúde, já o fazem. Se navegar pelo site do Center for Disease Control (por exemplo, esta página) descobrirá que a linguagem clara é prática normativa e que o jargão é reduzido ao essencial.
Outro exemplo da aplicação da linguagem clara na saúde está no Regulamento Europeu 536/2014 dos Ensaios Clínicos, aplicável a partir 31 de janeiro de 2022. No artigo 37 é descrita a obrigação dos promotores de ensaios clínicos apresentarem um resumo dos resultados do estudo num formato compreensível ao público leigo.
Também a Agência Europeia do Medicamento (EMA) deu um passo em direção à linguagem clara e publicou, no início deste ano, um glossário de termos médicos simplificados, denominado EMA Medical Terms Simplifier — Plain-language description of medical terms related to medicines use. Trata-se de uma vasta lista de palavras e expressões que os especialistas da EMA usam quando preparam materiais para o público.
Conclusão
Para comunicar de forma eficaz é necessário ter em mente as características do público-alvo e apresentar a informação de forma simples e clara.
No âmbito da saúde, seja pelo uso de palavras puramente técnicas, de acrónimos ou de modos de raciocínio complexos, quem está de fora deste domínio de saber tem muita dificuldade em ultrapassar o obstáculo chamado jargão, o que se pode refletir em decisões de saúde menos acertadas.
Numa era em que a informação é vasta e nem sempre precisa, os profissionais de saúde assumem um papel determinante como fontes de informação rigorosa, confiável e acessível, pelo que será importante melhorar as suas competências comunicacionais, incluindo de linguagem clara.
Put simply, the education of health professionals in the 21st century must focus less on memorising and transmitting facts and more on promotion of the reasoning and communication skills that will enable the professional to be an effective partner, facilitator, adviser, and advocate.
Frenk et al. (2010)
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