Sabe o que são as precauções universais de literacia em saúde?
13 maio 2022, PATRÍCIA RODRIGUES

A hipertensão é uma doença comum, da qual se fala com alguma regularidade. Tal pode levar-nos a presumir que todas as pessoas sabem o que é. Mas será que essa é a realidade?
Para perceber até que ponto a população sabe o significado de termos médicos mais comuns, uma jornalista percorreu as ruas de Nova York e perguntou aos transeuntes o significado de várias palavras, entre as quais “hipertensão”. Um jovem na casa dos 20 anos, respondeu, com pouca certeza, que hipertensão significava que a pessoa estava “hiper-tensa”, ou seja, demasiado tensa. Outro cidadão, com cerca de 40 anos, deu uma resposta semelhante, acrescentando primeiro que se tratava de tensão “nos músculos” e depois que seria excesso de stress. Várias pessoas não souberam responder e não tentaram “adivinhar”.
Se um termo (aparentemente) vulgar gera esta imprecisão, imagine alguém diagnosticado com um problema de saúde mais complexo, do qual nunca ouviu falar. A acrescentar à nova informação — sobre a doença, sobre os exames que terá de fazer, sobre as opções de tratamento, sobre o prognóstico — o doente terá ainda que lidar com a complexidade do sistema de saúde e os desafios emocionais que acompanham estas situações.
Ou seja, cuidar da saúde não é tarefa fácil. Fazê-lo de forma eficaz exige procurar informação, ser capaz de a compreender e, por fim, usá-la de forma correta, tanto nas pequenas decisões diárias, como nos momentos mais difíceis. No fundo, exige níveis elevados de literacia em saúde.
O que é a literacia em saúde?
De acordo com Dodson et al., literacia em saúde diz respeito às “características pessoais e recursos sociais necessários para que indivíduos e comunidades acessem, compreendam, avaliem e usem informações e serviços para tomar decisões sobre saúde. A literacia em saúde inclui a capacidade de comunicar, argumentar e executar essas decisões.”
Esta definição indica que a literacia em saúde não resulta apenas das competências individuais, mas também dos recursos sociais. Assim, na perspetiva individual, falamos da capacidade de encontrar, compreender e aplicar informação de saúde. Por exemplo: compreender os riscos de fumar, encontrar um serviço ou produto que ajude a deixar de fumar, avaliar esse serviço/produto e tomar uma decisão acertada. Na perspetiva social, referimos aspetos mais estruturais, tais como a maior ou menor facilidade para navegar no sistema de saúde, a acessibilidade dos serviços e a forma como a informação é disponibilizada à população — aspetos que podem facilitar ou dificultar o percurso do utente e o desenvolvimento da sua literacia em saúde.
Porque é importante falarmos de literacia em saúde?
Quando as pessoas não conseguem encontrar ou compreender a informação disponível dificilmente tomarão decisões acertadas. Tal afetará os cuidados que têm com a sua saúde, os seus comportamentos e, em última análise, o seu estado de saúde.
De facto, os estudos mostram que a dificuldade de encontrar, compreender e aplicar informação de saúde (ie. baixa literacia em saúde) está fortemente associada a:
- Menor adesão a atividades preventivas (ex: exames de rastreio, campanhas de vacinação).
- Mais erros na toma de medicamentos.
- Maior dificuldade para gerir doenças crónicas.
- Maior utilização dos serviços de urgência.
- Maior número e duração de hospitalizações.
- Maior taxa de mortalidade.
O compromisso do autocuidado, os comportamentos menos saudáveis e o mau uso dos serviços de saúde têm consequências clínicas, financeiras e humanas. Neste sentido, a literacia em saúde também é considerada um fator de risco, para além de competência individual.
Addressing health literacy is important to achieve patient safety goals.
– Health Literacy Universal Precautions Toolkit
Quem pode ser afetado por baixa literacia em saúde?
Todas as pessoas.
Embora se saiba que alguns grupos populacionais estão em maior risco de terem baixa literacia em saúde — e de sofrer as referidas consequências — a verdade é que qualquer pessoa, em qualquer momento da sua vida pode ter dificuldade em gerir e decidir sobre questões de saúde.
Note-se que a literacia em saúde não é um valor fixo e imutável, pelo contrário, varia em função do tema e do contexto. Por exemplo, alguém com boa literacia nutricional pode saber muito pouco de doenças oncológicas. Um exemplo da influência do contexto seria alguém confrontado com um diagnóstico difícil: mesmo que a pessoa saiba sobre o assunto, em momentos desses, não só o chão que foge dos pés, o conhecimento que a pessoa possa ter também desaparece da memória.
A esta variabilidade, acresce o facto de não ser possível determinar o nível de literacia em saúde de uma pessoa apenas observando-a, falando com ela ou considerando que, por ter determinadas características, terá baixa literacia em saúde. De facto, atribuir o “rótulo” de baixa literacia em saúde pode causar estigmatização, o que não é de todo desejável.
Assim, se qualquer pessoa pode ter (ou passar por momentos de) menor literacia, também qualquer pessoa beneficiará de informação clara e fácil de compreender e de serviços centrados nas suas necessidades — essa é a proposta das Precauções Universais de Literacia em Saúde.
Research shows that clinicians have trouble identifying patients with limited health literacy.
– Health Literacy Universal Precautions Toolkit
O que são as precauções universais de literacia em saúde?
Estas precauções universais foram desenvolvidas por especialistas a pedido da Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ), uma prestigiada agência americana. Trata-se de um pacote de 21 orientações, baseadas na evidência, que têm com o objetivo “ajudar as organizações, os líderes e os profissionais de saúde a melhorar a literacia em saúde”.
Embora tenham sido desenvolvidas para os cuidados de saúde primários, as precauções universais podem ser aplicadas noutros contextos. Além disso, são úteis tanto para organizações sem experiência em iniciativas de literacia em saúde como para aquelas mais treinadas neste processo.
The Toolkit can help practices reduce the complexity of health care, increase patient understanding of health information, and enhance support for patients of all literacy levels.
– Health Literacy Universal Precautions Toolkit
Quais são as precauções universais de literacia em saúde?
As precauções universais têm 3 linhas mestras:
- Simplificar a comunicação e confirmar a compreensão do utente para minimizar o risco de falha na comunicação.
- Tornar o ambiente do consultório e do sistema de saúde mais fáceis de navegar.
- Apoiar os utentes nos seus esforços de melhoria da sua saúde.
Ao adotar as precauções universais de literacia em saúde os profissionais e os fornecedores dos serviços de saúde aplicam estratégias de comunicação clara e acessível, promovem a decisão partilhada e eliminam as barreiras desnecessárias, tanto na comunicação, como no percurso do utente.
Communicating clearly helps people feel more involved in their health care and increases the chances of following through on their treatment plans. All patients appreciate receiving information that is clear and easy to act on.
– Health Literacy Universal Precautions Toolkit
Na prática, como se concretizam as precauções universais de literacia em saúde?
Como referi, as precauções universais apresentam 21 ferramentas: as 3 primeiras são dedicadas ao planeamento e mobilização organizacional necessários para implementar iniciativas de literacia em saúde; as 7 seguintes versam sobre a comunicação oral; seguem-se 3 sobre a comunicação escrita; 4 sobre técnicas para auxiliar a gestão da doença e da saúde; e as últimas 4 relembram os sistemas de apoio que existem, sugerindo formas de orientar o utente para esses recursos.
De seguida abordarei apenas 5 destas ferramentas, sendo uma amostra das mais orientadas para a comunicação oral e escrita entre o profissional de saúde e o utente. Para a conhecer as restantes, visite este link.
Ferramenta 4: Comunicar de forma clara
Todas as profissões têm o seu vernáculo — em saúde existe o “medicalês”. Este vasto conjunto de termos técnicos e científicos não são do conhecimento do público, que pode ter dificuldade em compreender o seu significado, assim como distinguir informação importante, que exige atenção e ação, de detalhes irrelevantes.
As estratégias de comunicação clara incluem substituir a terminologia técnica por palavras conhecidas, limitar a informação partilhada, repetir os aspetos mais relevantes e utilizar apoios visuais que auxiliem a explicação e a compreensão.
Nesta ferramenta é também salientada a importância de receber o utente de forma positiva, estabelecer contacto ocular e ouvir com atenção, evitando interrompê-lo.
Pode saber mais sobre linguagem clara nestes artigos:
Ferramenta 5: Usar o Teach-back
O teach-back é um método que permite confirmar que a mensagem foi bem compreendida. Consiste em pedir ao utente para explicar, nas suas palavras, o que ouviu ou leu.
Neste âmbito, a forma como se faz essa solicitação é determinante: repare que é muito diferente perguntar “Tem dúvidas sobre a toma do medicamento?” ou “Para ter a certeza de que expliquei bem, pode dizer-me como deve tomar este medicamento?” No primeiro caso, convidamos a uma resposta sim/não; no segundo, criamos a oportunidade para o utente rever a informação que recebeu, eventualmente aplicar essa informação e, caso surjam dúvidas, esclarecê-las no momento.
Pode saber mais sobre teach-back aqui.
Ferramenta 11: Avaliar, selecionar e criar materiais fáceis de entender
Confesso que este é um dos temas que mais gosto! Embora a interação com o profissional de saúde seja de incalculável importância, a maior parte da informação de saúde está escrita — em folhetos, formulários, guias de apoio, websites, etc. Melhorar essa informação é, por isso, fundamental.
As recomendações mais salientes desta diretriz são:
- Apostar em formação nesta competência, dirigida aos profissionais de saúde ou a quem participa na elaboração de materiais de saúde.
- Avaliar os materiais com ferramentas para o efeito ou testar diretamente com os utilizadores.
- Desenvolver materiais para níveis baixos de literacia em saúde, considerando também as opções de vídeo, animações e áudio, para além dos formatos escritos.
- Aplicar as regras da linguagem clara (brevemente referidas acima).
Leia também:
Muitos utentes têm receio de fazer perguntas, existindo vários motivos para isso: não querem incomodar, têm vergonha de não saberem, não querem dar a ideia de que duvidam da competência do profissional ou, tão simplesmente, estão sobrecarregados com a informação que já receberam. Como resultado, dúvidas importantes ficam por esclarecer, o que pode levar a erros e consequências de saúde.
Esta ferramenta propõe fazer perguntas abertas (“Que dúvidas tem?” em vez de “Tem dúvidas?”), idealmente, várias vezes ao longo da conversa. Além disso, a linguagem corporal também é relevante. Por exemplo, se convidar o utente a fazer perguntas sem estabelecer contacto ocular, de uma forma apressada, ou até à saída do consultório, isso vai dissuadi-lo.
A este respeito, partilho uma experiência pessoal. Há poucos meses fui a uma consulta no dentista, de rotina. No final o médico perguntou-me “Que perguntas tem para mim?” Fui apanhada de surpresa! “Perguntas? Hum… não tenho nenhuma.” Quando cheguei a casa lembrei-me das perguntas que queria ter feito.
Este exemplo serve para mostrar que não é apenas o profissional de saúde que precisa de treino, o utente também precisa de se habituar a fazer perguntas. Uma forma de o conseguir é pedir para o utente pensar (e até escrever) as suas dúvidas antes da consulta.
Ferramenta 16: Ajudar os doentes a lembrar quando e como tomar os medicamentos
Sabemos que pessoas com menos literacia têm mais dificuldade em seguir a terapêutica medicamentosa. Para esse efeito recomenda-se:
- Um formulário de consulta com a lista de medicamentos e as respetivas tomas. Mesmo com uma caixa de medicamentos, as pessoas que fazem medicação concomitante podem beneficiar deste auxílio.
- Dar instruções claras. Por exemplo, em vez de dizer “tome este medicamento duas vezes por dia”, é mais correto dizer “tome este medicamento ao pequeno-almoço e ao jantar”, ou até indicar as horas exatas.
- Antecipar os erros. Se perguntar ao utente em que situações se esquece de tomar o medicamento ou que confusões costumam acontecer, poderá sugerir soluções para evitar esses lapsos no futuro.
Como é que as precauções universais ajudam as organizações e as pessoas?
As 21 propostas da AHRQ oferecem vários benefícios, tanto para indivíduos como para os serviços de saúde.
Para indivíduos:
-
- Melhoram a compreensão da informação.
- Ajudam o utente a fazer questões abertamente e a dizer que não compreendeu a informação que recebeu.
- Aumentam a adesão aos tratamentos e reduzem o risco de eventos adversos.
- Ajudam o utente a saber o que tem de fazer a seguir ou como encontrar a ajuda de que necessita.
- Ajudam o doente a lidar com a sua patologia com menos preocupação e receio.
- Contribuem para aumentar a autonomia e sentido de responsabilidade pela própria saúde.
- Contribuem para decisões partilhadas.
- Permitem alcançar um melhor estado de saúde.
Para as organizações
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- Ajudam a desenvolver planos de ação para a promoção da literacia em saúde.
- Mostram como sensibilizar as equipas e mantê-las envolvidas no tema da literacia em saúde.
- Ajudam a criar um ambiente em que todas as pessoas podem controlar e melhorar a sua saúde.
- Evitam a estigmatização das pessoas com baixa literacia em saúde.
- Diminuem o risco de erros, atrasos e reclamações.
- Melhoram a experiência do utente.
- Contribuem para melhorar os cuidados de saúde e aumentar a segurança do doente.
Conclusão
As precauções universais abordam a comunicação com o doente tendo em conta que qualquer pessoa está em risco de não compreender a informação e que os profissionais não conseguem identificar com rigor quem são essas pessoas. Este conjunto de 21 ferramentas ajuda a melhorar a comunicação e a reduzir o impacto que a complexidade do sistema tem sobre os indivíduos. Como resultado, a comunicação com a comunidade será mais eficaz e as organizações serão mais “amigas” da literacia em saúde — o que, em última análise, contribuirá para a saúde da população.
Everyone gains from health literacy universal precautions. Research shows that interventions designed for people with limited health literacy also benefit those with stronger health literacy skills.
Health Literacy Universal Precautions Toolkit
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