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Dar mais atenção às palavras: uma reflexão sobre a importância da palavra na comunicação em saúde
31 janeiro 2024, PATRÍCIA RODRIGUES

As palavras têm poder, respondeu Isaac. As palavras podem começar ou terminar guerras. Podem construir ou destruir famílias. Podem partir corações. Também os podem curar.
– Lori Handeland
As palavras que escolhemos dizer ou escrever servem um propósito maior do que apenas trocar informação, oferecer conselhos ou dar instruções. As palavras influenciam a nossa forma de pensar, os nossos valores e as nossas decisões; moldam a nossa realidade — e a realidade dos outros.
Extrapolando para a comunicação em saúde, as palavras podem ter um profundo impacto no bem-estar físico e mental da pessoa que recorre aos serviços de saúde. Neste artigo, reflito sobre a influência das mesmas na experiência do utente e nos resultados que obtém.
Faz sentido refletir sobre as palavras?
A comunicação é um fenómeno complexo em que vários elementos interagem entre si: emissor, recetor, mensagem, canal, contexto. Mais ainda, cada um deles tem múltiplas facetas que afetam outras facetas de outros elementos da comunicação.
Para simplificar o estudo desta disciplina, podemos isolar, estudar e modificar um desses componentes. Por exemplo, podemos avaliar e melhorar as competências de comunicação dos intervenientes, aprender a construir mensagens mais claras, mudar o formato da mensagem, escolher o canal mais eficiente. Neste artigo optei por isolar a variável “palavras”.
Embora esta estratégia nos ajude a compreender melhor a influência do elemento em estudo, por outro lado, perdemos a dinâmica da comunicação como um todo — concordo, isolar o elemento palavras não é uma solução perfeita. Mas, veja-se, é exatamente isso que fazemos na investigação da biologia humana, em que definimos o nosso objeto de estudo a diferentes níveis de complexidade, desde o sistema, ao órgão, tecido, célula, organela celular, molécula… e poderíamos continuar. Talvez seja demasiado redutor, mas, tal como Lori Handeland, considero que as palavras têm poder, por isso olhemos para elas com mais atenção.
Na comunicação em saúde, as palavras têm um grande impacto
Existe um estudo que diz que 55% da comunicação faz-se pela linguagem corporal, 38% pelo tom de voz e apenas 7% pelas palavras. Embora estes números estejam amplamente disseminados, no contexto da saúde, acredito que essas proporções sejam diferentes — tendo as palavras um peso maior.
As palavras medeiam a interação entre profissionais de saúde e utentes, permitem a prestação de cuidados e impulsionam as melhores escolhas em saúde. As palavras podem reconfortar ou assustar, aproximar ou afastar, capacitar ou fragilizar. As palavras, ditas ou escritas, definem as decisões e os resultados de saúde. Na comunicação em saúde, a palavra certa faz toda a diferença.
As palavras estabelecem a linguagem comum que permite o entendimento mútuo
Se consegue ler este texto é porque domina a Língua Portuguesa. Se não conhecesse a língua, são conseguiria compreender o que aqui está escrito. Ou seja, é a linguagem comum que nos permite comunicar.
A linguagem da ciência da saúde é como uma língua estrangeira; pior, é uma língua com muitos dialetos. Por exemplo, num hospital, cada serviço (especialidade) tem o seu vocabulário, todos eles diferentes da linguagem do cidadão! Fará sentido exigir do utente que se adapte a tantos dialetos?
O jargão é uma camada de dificuldade adicional que os utentes têm de enfrentar, à qual se soma o problema de saúde, a complexidade do sistema e todos os impactos que a boa ou má saúde tem nas várias dimensões da vida. Para o profissional de saúde pode ser uma simples palavra, para o utente pode ser mais uma fonte de angústia.
Por outro lado, o jargão impede o utente de compreender bem a informação de saúde, logo, impossibilita a decisão bem informada. E por decisão não me refiro apenas ao tratamento, mas também às decisões do dia a dia, que podem ir desde o estilo de vida, à adesão à terapêutica e aos autocuidados. Neste sentido, mal-entendidos podem colocar em risco a segurança do utente e prejudicar o seu estado de saúde.
As palavras acentuam as assimetrias de poder
A relação entre o profissional de saúde e o utente é assimétrica em vários sentidos, um deles é a assimetria do conhecimento. O profissional de saúde é o fiel depositário da ciência, é o especialista. Detém e fornece informação sobre o diagnóstico, as opções de tratamento, os riscos, os benefícios, o prognóstico. Já o utente, nem tem o mesmo nível de conhecimento, nem consegue refletir sobre essa informação da mesma forma.
Esta assimetria, também evidenciada pelo uso de jargão, pode prejudicar o serviço prestado ao utente, pois intimida-o, impede-o de fazer perguntas e de partilhar a sua história de forma aberta e completa. No fundo, retira-o da decisão, desresponsabiliza-o e atribui-lhe um papel passivo. Por consequência, a comunicação deixa de ser uma partilha para ser uma emissão unidirecional de factos e diretivas.

Esta abordagem centrada no domínio científico do profissional, pode mesmo sem intencionalidade, ferir suscetibilidades ou ofender o utente. Num inquérito a quase 23 000 doentes com acesso aos registos feitos durante as suas consultas médicas, um em dez referiu sentir-se julgado ou ofendido com o texto desses registos. Alguns motivos são a linguagem condescendente ou estigmatizante. Por exemplo, um doente referiu: «O uso do verbo negar, como em “negou formigueiro ou fraqueza”. Eu não neguei, apenas não senti. É completamente diferente.»
As palavras reforçam ou fragilizam a relação terapêutica
Prestar um cuidado de saúde não se equipara a prestar outro serviço ou vender um produto. A relação entre o profissional de saúde e o utente tem características particulares, que adquire tonalidades diferentes consoante a luz que usamos.
À luz do cuidado do centrado no profissional, no seu conhecimento e nas suas decisões, a comunicação tende a ser, como vimos, diretiva e pouco empática. Além disso, é muitas vezes insensível, estigmatizante e indiferente à multidimensionalidade da pessoa. Neste sentido, a má escolha das palavras acentua o sofrimento e danifica a confiança que a pessoa tem no profissional de saúde.
A confiança é um aspeto fundamental da relação entre profissional de saúde e utente. É com base na confiança que o utente procura ajuda, partilha a informação (toda), assim como objetivos e preocupações. A construção da confiança exige que o utente aceite as suas vulnerabilidades e acredite na competência, integridade e boa-fé do no profissional de saúde. Assim, a confiança está na base da aliança terapêutica. Muitas palavras são necessárias para construir esta confiança mútua, mas basta uma para a fragilizar ou destruir.

As palavras mudam significados e responsabilidades
Um aspeto interessante da linguagem é a sua capacidade de discriminar, no sentido de diferenciar uma coisa da outra. Por exemplo, quando dizemos “carro” estamos a excluir tudo o que não é carro. Por outro lado, discriminar é também clarificar. Na escolha das palavras, é importante termos em atenção o que queremos discriminar e destacar.
Referi antes que as assimetrias no conhecimento podem levar a uma alienação do utente em detrimento da responsabilização única do profissional para a resolução do seu problema de saúde. Este desinteresse é acentuado quando se atribui culpas ao utente. Por exemplo, a expressão “o doente não aderiu o tratamento” implica uma culpa no não cumprimento, sem apresentar motivos. Ao invés, dizer “o doente não tomou o medicamento devido a problemas financeiros”, não só é mais factual como não aponta o dedo à “indisciplina” da pessoa.

Outra vertente do significado que as palavras carregam, e de como isso muda o papel dos intervenientes, é a utilização de uma linguagem centrada nas competências do utente, ao invés de linguagem centrada nas suas carências. Por exemplo, ao dizermos “o doente não seguiu as orientações alimentares propostas”, não só atribuímos culpas, como acabamos de ver, como também salientamos o que o doente não faz. Ao mudar para “o doente já come duas porções de frutas e vegetais uma vez por dia”, estamos a apresentar o lado positivo e a clarificar as capacidades da pessoa, não as suas falhas. Assim, o doente deixa de ser alguém que não cumpre, para ser alguém no caminho da mudança — a diferença é abismal.
Conclusão
Neste artigo abordei alguns impactos da escolha de palavras na comunicação em saúde. Referi o seu papel nas dinâmicas de poder, a sua participação nas relações terapêuticas e a sua capacidade de diferenciar significados e responsabilidades. Referi ainda a importância de uma língua comum para existir um verdadeiro entendimento entre as partes.
O impacto da palavra reflete-se no envolvimento do utente, na sua participação nas decisões, na sua capacitação e na construção de uma aliança terapêutica, modificando, por isso, a experiência e perceção do cuidado de saúde.
Por tudo isto, a importância da palavra não pode ser subestimada. As palavras têm poder, usemo-las bem!
Raise your words, not your voice. It is rain that grows flowers, not thunder.
Rumi
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