COVID19:
do problema de saúde pública ao problema da fadiga pública
2 outubro 2020, PATRÍCIA RODRIGUES

Muitas regras a cumprir, distanciamento emocional, excesso de informação, teletrabalho, alteração das relações familiares e medo geram a impaciência de um fim que não está há vista, transformando um problema de saúde pública num problema de fadiga pública. Compreender as causas e antever os riscos de uma espécie de burnout generalizado causado pela pandemia é a proposta deste artigo.
Ponto de situação
Mais de seis meses passaram desde o primeiro período de confinamento em Portugal. Arrisco-me a dizer que foram os seis meses mais improváveis dos tempos recentes. Foi período de mudanças permanentes e incertezas constantes.
Apesar de termos cumprido e continuarmos a cumprir todas as recomendações, o número de casos continua a aumentar a nível mundial. Paira agora a ameaça de uma segunda onda, com a possibilidade de novos confinamentos e mais consequências económicas e sociais.
Estamos numa fase em que temos de lidar com o vírus e… com a fadiga de ouvir falar sobre o vírus. O exército que combate esta pandemia (todos nós) é um conjunto de soldados ora feridos, ora cansados. E um exército cansado, desmotivado e impaciente pode colocar em risco os resultados da batalha.
De seguida apresento seis fatores que considero muito relevantes para este fenómeno de fadiga pública.
1. A multiplicação das regras, normas e leis
As instruções, normas e leis para estamos em sociedade crescem a par do número de casos de infeção por COVID19.
Hoje temos regras para usar os transportes públicos. Regras para circular nas escolas e universidades. Regras para entrar e sair dos centros comerciais e lojas. Regras para o atendimento ao público, para o funcionamento dos restaurantes, cabeleireiros e todos os outros serviços. Medidas específicas para diferentes cidades. Regras para tossir, espirrar e lavar as mãos. Regras para usar, não usar, tocar, lavar e substituir máscaras. Ainda mais regras para utilizar os serviços de saúde. E a lista continua.

Hoje estamos em estado de contingência, amanhã de emergência, depois de alerta… em que estado é que estamos mesmo? Não me interpretem mal, não pretendo julgar o foi feito nem as decisões tomadas. Apenas constatar que tudo isto é muito cansativo.
Com tantas orientações a seguir, comportamentos outrora rotineiros exigem agora árvores de decisão complexas. Temos de pensar nas consequências de pequenas ações como nunca o fizemos. O resultado deste contínuo esforço mental e emocional, sem uma base de resiliência, é o cansaço sem causa aparente.
2. O isolamento mascarado
As normas que nos ajudam a conter a pandemia têm outro lado perverso, que foi evidenciado durante o confinamento: o afastamento emocional.
Sim, já não estamos confinados, mas sejamos francos, o distanciamento social propicia o afastamento emocional. Por outro lado, estar de máscara dificulta a comunicação e o relacionamento, seja ele qual for. São barreiras invisíveis, mas reais.
As tecnologias apenas suavizam esta realidade, não creio que sejam suficientes para satisfazer a necessidade humana de conexão. Uma chamada telefónica é melhor que nada? Verdade. Uma videochamada enche uma parte do coração? Concordo. Seria muito mais difícil sem as tecnologias? Sem dúvida. No entanto, ainda não substituem o contacto humano.

Poderia dar inúmeros exemplos deste isolamento mascarado. Desde a impossibilidade de visitar familiares que estão em lares, restrições em funerais, crianças que têm de ficar nas salas durante os intervalos das aulas, mas opto por um mais simples e até banal: combinar um café com amigos. É incrível como isto se tornou uma decisão de alto nível! “Onde vamos? As mesas estão distanciadas? Será seguro? A que horas estarão menos pessoas? Há surtos nessa zona?” Tantas deliberações e dúvidas podem levar as pessoas a desanimarem e a ficarem em casa. Desta forma agudiza-se o afastamento emocional.
3. O efeito de tolerância à informação
Em farmacologia – estudo do efeito que os medicamentos têm no organismo – existe o conceito de tolerância. A tolerância pode acontecer quando um medicamento deixa de ter efeito quando é usado de forma regular. Ou seja, uma determinada dose funciona no início e com o uso continuado deixa de funcionar. Para se obter o mesmo efeito é necessária uma dose mais alta.
A comunicação massificada sobre a COVID19 está a ter o mesmo efeito. Embora no início tenha havido grande interesse sobre o tema, agora há o risco do desinteresse.

Na fase inicial da pandemia foi fundamental informar a população e capacitar as pessoas para lidarem eficazmente com o vírus. Foi uma fase disseminação constante de esclarecimentos e instruções a este respeito. Mas se no início as pessoas estavam ávidas de informação, agora estão fartas deste assunto, estão sobrecarregadas.
Avanços e recuos, informação e contrainformação, teorias da conspiração e, lá está, as inúmeras orientações a seguir, têm este efeito de tolerância. Geram desânimo, desinteresse e perda de confiança nas autoridades. Em contrapartida, fazem crescer o sentimento de incerteza e de falta de controlo sobre o desfecho da pandemia. A esta lista de incertezas acrescentaria a dúvida quanto à evolução económica e social e quanto à segurança dos serviços de saúde.
Estes são desafios emocionais, mais ou menos evidentes em cada um de nós, mas que somam à equação da fadiga pública.
4. A ilusão do teletrabalho
Trabalhar a partir de casa tem vantagens, tais como:
- Mais flexibilidade de horários
- Menos despesas de deslocação
- Menos despesas de alimentação
- Maior liberdade e autonomia no trabalho
- Menos distrações com colegas
- Mais tempo para a família

Com a pandemia muitas empresas entraram em teletrabalho quase de um dia para o outro, obrigando a um enorme esforço de adaptação por parte das pessoas e das organizações. Com o passar do tempo, alguns benefícios do teletrabalho foram substituídos pelas suas desvantagens:
- Não ter horários de trabalho ou trabalhar mais horas
- Falta de orientação no trabalho
- Dificuldade em organizar o trabalho
- Sentimento de isolamento
- Perda da ligação com os colegas e empresa
- Uso excessivo de plataformas de teleconferência
- Dificuldade de comunicação através das plataformas digitais
- Dificuldade em separar o trabalho da vida pessoal
- Refeições desleixadas
- Aumento do sedentarismo
Diversos estudos mostram o impacto que o teletrabalho tem na exaustão e na saúde mental, e concluem que trabalhar em casa não é a solução certa para todas as pessoas. Exige disciplina e reorganização da vida e do trabalho, capacidades que variam de pessoa para pessoa.
5. O desafio nas relações familiares
Em consequência do confinamento houve mais um fator de desgaste a acrescentar aos referidos anteriormente: a presença de toda a família em casa, inclusivamente dos filhos, que estiveram em telescola ou deixaram de estar nas creches.
Foi necessária uma enorme flexibilidade para viver nesta nova realidade familiar. Isto causou tensões, discussões e desentendimentos no ceio da família. Inclusivamente, o problema da violência doméstica foi alvo de várias campanhas.

Estarão ultrapassadas as quezílias? O cansaço causado por este desafio nas relações familiares já foi revertido?
6. O medo debilitante
De uma forma implícita para uns e explícita para outros, a pandemia significa medo.
Este medo está relacionado com as incertezas sociais e económicas. Está também associado ao desconhecimento de quando a pandemia irá ter o seu fim. As normas de saúde pública e as restrições sociais condicionam a liberdade que tínhamos antes, contribuindo para a ansiedade e stress.
Além disso, a comunicação social e os utilizadores das redes sociais, de forma intencional ou não, alimentam e perpetuam a insegurança que as pessoas sentem, ora disseminando informações erradas, ora optando por determinadas abordagens jornalísticas.

O medo, o stress e a ansiedade constantes cansam, debilitam, fragilizam. Por outro lado, conforme temos visto em diversos pontos do globo, podem gerar um movimento contrário de revolta e rebelião contra as regras impostas. Em ambos os casos, a luta contra a pandemia pode ser colocada em causa.
As consequências
Conforme vimos, um lado perverso do combate à pandemia é o cansaço físico e emocional da população. Algumas pessoas lidam melhor com as crises, fazem uma boa gestão das suas emoções e do cansaço que sentem. Fazem uma alimentação saudável, exercício físico, cuidam do sono, ou seja, sabem cuidar de si. No entanto, há pessoas com mais dificuldades e nestas o risco de problemas de saúde, nomeadamente mental, é maior.
Além disso, o cansaço generalizado origina uma paciência frágil que faz aumentar os comportamentos de risco face à COVID19. Cresce a tendência para não se seguir as orientações de saúde pública e até para se achar que os pequenos atos não vão fazer grande diferença. Assim instala-se a desatenção e o desleixe.
Alguns grupos profissionais estão mais expostos a este fenómeno. Desde logo os profissionais de saúde, nos quais os índices de burnout já eram estudados e divulgados antes da chegada da COVID19.
Embora ainda seja difícil falar abertamente e sem preconceitos sobre a saúde mental, é inevitável fazê-lo. É importante reconhecer este efeito colateral da pandemia e atuar preventivamente para o bem-estar mental de toda uma sociedade e para que o virar de página deste momento histórico aconteça rapidamente.
“Se a campanha militar se prolongar demasiado, os recursos do Estado acabarão por não ser suficientes para sustentar o esforço.”
Sun Tzu – A arte da guerra
Imagens: Rawpixel
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