Uma guerra a duas frentes:
a pandemia e a infodemia
1 dezembro 2020, PATRÍCIA RODRIGUES
Desde o início da pandemia por COVID-19 que assistimos a um fenómeno paralelo: a infodemia.
A partilha de informação errada sobre doenças e estratégias de saúde não é algo novo, já acontecia antes da COVID-19. Porém, devido à natureza global esta epidemia e à evolução tecnológica de que dispomos, as teorias da conspiração e rumores negacionistas ganham uma força nunca antes vista.
A infodemia ocorre à escala global e representa um risco que deve ser avaliado e colmatado. Neste artigo analiso os motivos e os efeitos malignos da infodemia e da desinformação.
Definir infodemia e desinformação
Infodemia é o excesso de informação – alguma correta e outra errada – que ocorre durante uma epidemia (OMS, 2020). Propaga-se rapidamente e pode causar confusão e dificuldade em encontrar fontes idóneas de informação rigorosa. Pode também levar à perda de confiança na resposta ao problema de saúde pública.
A desinformação é informação falsa que foi criada com a intenção de causar dano a outros ou de obter algum benefício. Por exemplo, esta estratégia pode ser utilizada para minar a credibilidade de uma determinada instituição que é fundamental para o combate à pandemia.
Existe também a informação falsa que não foi produzida com o objetivo de causar prejuízo. Muitas vezes, esta começa quando alguém quer compreender o que se passa, mas acaba por tirar conclusões erradas e partilhar informações incorretas, pensando que está a ajudar.
Em ambos os casos, a informação falsa e errada pode ser lesiva para indivíduos, organizações e países. Gera dúvida, comportamentos de risco, perda de confiança nas instituições e, como consequência, falha ou atraso na resolução da pandemia.
Como é que a infodemia acontece
Nesta infodemia, a dispersão de informação de qualidade duvidosa é feita por pessoas e por tecnologias (ex: algoritmos de motores de busca e de redes sociais). De acordo com o esquema abaixo, proposto por Gallotti et al., alguns utilizadores (A e B) criam e partilham conteúdo falso e outros (C) criam conteúdo confiável e bem fundamentado. À medida que a informação é partilhada, alguns utilizadores são expostos apenas a informação falsa (D) e outros a ambas as categorias (E e F), que são naturalmente contraditórias.

Se um utilizador vê a mesma informação (verdadeira ou falsa) em vários locais, isso leva-o a acreditar na sua veracidade, passando a ser ele próprio o transmissor da informação. Os próprios algoritmos da internet promovem a apresentação do mesmo conteúdo a utilizadores que já o procuraram ou com o qual interagiram anteriormente. Já lhe aconteceu pesquisar no Google sobre, por exemplo, um destino turístico e depois aparecer no feed de uma rede social alguma publicação sobre esse destino? Os algoritmos fazem isto e tendem a expor as pessoas a informação do mesmo tipo.
O terreno fértil para a infodemia
Outras pandemias já aconteceram no passado, mas esta é a primeira acompanhada de uma infodemia a esta escala. Vários fatores se conjugam para que tal aconteça, quais saliento:
- A natureza mutável da ciência
Compreensivelmente, perante um vírus novo que provoca uma doença desconhecida, a ciência sobre ambos está em constante evolução e mudança. Isto representa um desafio acrescido para a gestão da infodemia, pois novos dados científicos são divulgados a um ritmo acelerado, por vezes contradizendo informações anteriores. A cada momento é fundamental saber qual é o conhecimento científico mais atual, de forma a não alimentar informação desatualizada. - Amplificação da informação nos canais digitais
A desinformação, contra-informação e rumores não é algo novo. O que é novo nos tempos atuais é a rapidez com que a informação viaja. Se por um lado o meio digital permite disseminar rapidamente informação útil ou até crucial para gerir uma situação de crise, por outro, permite que a informação errada circule com a mesma rapidez. Adicionalmente, o afastamento físico a que estamos sujeitos aumenta o uso dos meios digitais como fonte de informação. A título de exemplo, no mês de março deste ano, foram partilhados 550 milhões de tweets que continham os termos “coronavirus”, “corona virus”, “covid19”, “covid-19”, “covid_19” ou “pandemic”. - Algoritmos das redes sociais
Ao efeito anterior acrescem os algoritmos das redes sociais, que tendem a fornecer informação semelhante à que os utilizadores partilham e com a qual interagem. Desta forma, não apresentam informação contraditória e retiram a possibilidade de pensamento crítico e análise. A este respeito, convido à visualização deste vídeo do The Guardian, que demonstra a influência da perspetiva na análise da verdade.
- Falha nas estratégias de comunicação de saúde e de ciência
Se houvesse uma única estratégia de comunicação correta estaria o problema resolvido. Acontece que a infodemia tem contornos específicos em cada país, cultura, grupo de população. É necessário fazer esta avaliação, adaptar a comunicação e perceber se esta origina os efeitos procurados. Observamos com frequência uma simples divulgação de informação, pouco ajustada, excessivamente complexa e nada esclarecedora. Neste ambiente, ganha quem consegue comunicar melhor e os grupos interessados na desinformação aproveitam-se desta lacuna. - Confiança nas instituições
A perda de confiança e credibilidade das instituições governamentas e de saúde é mais um fertilizante para a propagação da informação falsa. Se a própria instituição comunica de forma errática e contraditória, vai comprometer a sua capacidade de influência junto da população. Quando as pessoas não acreditam nas fontes oficiais, outras se irão sobrepor a estas.
- Excessivo enfoque dado pela comunicação social
Durante semanas, meses, a COVID-19 foi o tema central da comunicação social. Este foco excessivo desperta o medo na população que, numa tentativa de perceber melhor o que se passa e o que fazer, vai em busca de mais informação, que é coisa que não falta nos mais diversos meios. Assim, se a comunicação social, ou parte dela, procurou informar o melhor que pode, também levou as pessoas a entrarem em terreno desconhecido e minado. - Baixa literacia em saúde e em ciência da população
Mas o problema não reside apenas na comunicação errada ou excessiva. Está também na dificuldade de obter, processar e compreender informação básica sobre saúde – literacia em saúde. Em Portugal, 5 em cada 10 pessoas têm níveis reduzidos de literacia em saúde (DGS, 2019). Ou seja, cerca de metade da população encontra barreiras na informação de saúde e desconhece a incerteza que está sempre associada ao conhecimento científico.
Não existem verdades absolutas, a ciência está em constante evolução. Mas na realidade em que vivemos, a investigação está a ser muito acelerada e por isso parecem existir mais mudanças e até contradições. Acresce que, durante a pandemia, a ciência vai diretamente do laboratório para os mass media, sem haver o escrutínio aprofundado dos especialistas e sem haver a tradução da linguagem científica em informação digerível pela população em geral. Compreensivelmente, este cenário agrava o problema da infodemia.
Os impactos da infodemia e da desinformação
Informação certa no momento certo pode salvar vidas. Da mesma forma, informação errada pode custar vidas, alongar o problema global de saúde pública e afundar ainda mais a economia, de entre outras consequências que abaixo descrevo.
- A desinformação pode colocar a saúde em risco
Frequentemente, a informação falsa é combinada com informação verdadeira para a aumentar a sua credibilidade. Tende a ser rapidamente consumida e partilhada. É construída de forma a influenciar os comportamentos das pessoas, colocando-as em maiores riscos de saúde relativos à pandemia ou outras situações. Por exemplo, no Irão circularam notícias falsas sobre a proteção que o álcool conferia contra a COVID-19. Como resultado, mais de 500 pessoas morreram após beberem álcool contaminado com metanol. - A desinformação pode aumentar risco de contágio
Um estudo feito pela Universidade de Oxford, em maio de 2020, concluiu que pessoas que acreditam em teorias da conspiração tendem a desrespeitar o distanciamento físico, o uso de máscaras e a não aceitar uma futura vacina. De facto, se as pessoas não estiverem corretamente informadas quanto aos comportamentos que devem ter para se protegerem e prevenirem contaminações, o número de casos continuará a aumentar. - A desinformação pode levar ao aumento de casos de infeção por Sars-CoV-2
Um estudo publicado na revista Nature Human Behaviour analisou mais de 100 milhões de tweets entre 22 de janeiro e 10 de março de 2020 e classificou-os quanto à veracidade da informação. Os investigadores descobriram que ondas de informação potencialmente falsa precedia o aumento do número de casos de COVID-19. Este estudo verificou também que, em resposta ao crescimento dos casos, a quantidade de informação credível e de fontes seguras a circular na rede social também aumentou. - A desinformação pode comprometer a sustentabilidade da resposta de saúde pública à pandemia
Estamos em plena segunda vaga e a capacidade de resposta dos hospitais está a ser levada ao extremo. Ultrapassado esse limite sustentável, o número de mortes por COVID-19 tenderá a aumentar muito. A esse facto irá juntar-se a época da gripe, que embora esteja em mínimos históricos devido ao uso de massificado de máscara, é um evento com o qual temos de contar. - A infodemia prejudica os restantes cuidados de saúde
Por todo o mundo a resposta de saúde foi dirigida, em grande parte, para o tratamento da COVID-19. Consultas foram canceladas, cirurgia adiadas, rastreios suspensos… Como resultado, temos assistido ao aumento do número de mortes por causas não-covid. Este artigo da Ata Médica Portugesa descreve o fenómeno em Portugal, sendo que este não é exclusivo do nosso país. - A desinformação pode aumentar a vulnerabilidade de determinados grupos
As pessoas com menos literacia em saúde, ou seja, aqueles tem têm maior dificuldade em aceder e compreender a informação disponível, serão mais suscetíveis de manipulação e equívocos. Neste grupo estão os mais velhos mas também os mais novos, muitas vezes influenciados por bloggers, youtubers e outras pessoas com muitos seguidores que se aproveitam da pandemia para conseguirem mais gostos e maior alcance. - A infodemia pode colocar em risco a saúde mental
O tsunami de informação é um desafio para todas as pessoas, mesmo para os especialistas na área. Processar grandes quantidades de informação, que muitas vezes é inconsistente, requisita elevadas exigências intelectuais e emocionais.
A pandemia já é uma fonte de incerteza, que é potenciada pela exposição ao excesso de informação. Esta gera ansiedade, sobrecarga emocional, cansaço e pode afetar a tomada de decisões acertadas. De facto, a pandemia está a ter um impacto muito forte na saúde mental de todos. Fala-se em fadiga pandémica, que é inflamada pela infodemia. - A desinformação pode prejudicar a confiança nas instituições
Já referi este problema acima. De facto, o problema de confiança é causa e consequência para a infodemia. Muitas teorias da conspiração são lançadas com o exato propósito de corroer a confiança das instituições nacionais e internacionais, sabendo que a comunicação eficaz opera na base da transparência e confiança. - A desinformação pode afundar mais a economia
Sempre que informação falsa ganha relevo nos meios de comunicação, damos um passo atrás no fim da pandemia. Quanto mais atrasarmos a resolução da pandemia, maiores são as consequências económicas. Aliás, estamos já a assistir a um aumento do desemprego, de falências de empresas e de dificuldades financeiras em muitas famílias.
A resposta da OMS à infodemia
A OMS rapidamente reconheceu que o problema da infodemia estava a crescer e que, sem controlá-lo, também a pandemia não será dominada. Esta organização defende que a infodemia deve ser considerada uma disciplina científica, estudada a par da COVID-19, do vírus que a causa e da epidemiologia da doença. A OMS cunhou esta disciplina de infodemiologia.
Sabemos que a adequação dos comportamentos é fundamental para combater a pandemia, por isso a OMS encoraja a investigação na área da infodemiologia, de forma a desenvolver ferramentas e intervenções que respondam eficazmente a este fenómeno. Neste sentido, tem desenvolvido campanhas de comunicação e disponibilizado inúmeros recursos nesta área, dos quais sublinho:
- A plataforma chamada Rede de Informações da OMS sobre Epidemias (WHO Information Network for Epidemics –EPI-WIN);
- Uma lista de temas de desinformação relacionados com a pandemia;
- O primeiro curso para “Gestores de Infodemia”, em novembro de 2020;
- A primeira Conferência de Infodemiologia, em julho de 2020;
- A terceira Conferência virtual de gestão da infodemia da OMS, ainda a decorrer e que ainda aceita inscrições;
- O relatório “An ad hoc WHO technical consultation managing the COVID-19 infodemic: call for action”, de abril de 2020.
“We’re not just fighting an epidemic; we’re fighting an infodemic.”
Tedros Adhanom, Diretor-Geral da OMS
Conclusão
Esta é de facto uma guerra a duas frentes: temos o vírus de um lado, e a infodemia, nomeadamente a desinformação, no outro.
Para responder a este problema duplo é primeiro necessário reconhecê-lo à escala global e nacional. À semelhança, é essencial criar estruturas e regras para detetar e combater as narrativas conspiracionistas, negacionistas e falsas. Assim como o vírus, também a informação não conhece fronteiras.
Cresce o imperativo de repensar a forma de gerir a infodemia usando modelos baseados na evidência e que são sensíveis às características da população. É também fundamental promover a informação clara e ajustada às necessidades da população, para assim aumentarmos a literacia em saúde das pessoas e alimentarmos o seu sentido crítico. Por outro lado, é também necessário dotar os profissionais de saúde, investigadores, jornalistas, entre outros, de mais conhecimento e capacidade de comunicar saúde, respeitando as especificidades desta área.
Desta forma, a avaliação da credibilidade da informação crescerá e a infodemia diminuirá. Todos seremos agentes de saúde pública e divulgadores de informação válida e precisa.
Imagens: Rawpixel
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