Blog Comunicar em Saúde
Informação de saúde fácil de ler, entender e usar: contributo da linguagem clara para a saúde
2 novembro 2021, PATRÍCIA RODRIGUES
A complexidade da informação de saúde que é dirigida à população não é assunto novo. Em 1999, numa revisão da literatura sobre literacia em saúde, Rima Rudd e colegas referem que muitos conteúdos de saúde escritos para o público leigo são mal compreendidos, pois o nível de literacia em saúde exigido é superior às competências do leitor. Em 2007, numa atualização deste trabalho, reiteram a mesma observação.
Este desencontro entre a literacia em saúde da população e a forma como a informação é disponibilizada abre o caminho para a necessária descomplicação da comunicação e sua adaptação ao público-alvo. Neste sentido, pretendo aqui sensibilizar para a importância de simplificar a informação de saúde e apresento o contributo da linguagem clara para esta mudança. Ao longo do artigo defino a linguagem clara, nomeio as suas características principais, partilho os benefícios de usar a linguagem clara na saúde e, no final, descrevo alguns estudos que refletem o ponto de situação da sua aplicação na saúde.
Breve história da linguagem clara
É difícil precisar quando surgiu o movimento da linguagem clara. Num artigo escrito por Karen Schriver, a autora explora a evolução da linguagem clara nos Estados Unidos da América, de 1940 a 2015, podendo esta ser resumida da seguinte forma:
Período
Pergunta principal
A solução
1940-1970
As pessoas conseguem entender a informação?
Foco na lecturabilidade (palavras pequenas, palavras comuns, frases curtas)
Anos 70
As pessoas conseguem usar a informação?
Assegurar a usabilidade da informação
1980-2000
É fácil encontrar a informação?
Melhorar narrativa, design da informação e acessibilidade
2000-2015
As pessoas acreditam e confiam na informação?
Garantir que a informação é confiável e credível
O interesse na linguagem clara tem vindo a crescer na comunicação empresarial , governamental, área financeira, saúde, entre outras. De facto, uma pesquisa simples da expressão “plain language” no Pubmed mostra um gráfico de crescimento exponencial entre os anos 70 e 2021, com mais de 1300 publicações feitas nos últimos 10 anos, sendo que o número mais elevado de artigos foi registado no ano ainda vigente. Falarei de alguns deles mais à frente.
Ao longo deste caminho, a linguagem clara posicionou-se como uma técnica de comunicação e também como um movimento que visa aumentar a transparência da informação, tornando-a mais próxima e útil para a população. Como exemplo, refiro a iniciativa “Clear Writing Campain” da Comissão Europeia, que começou há mais de 10 anos com o objetivo de melhorar a comunicação dentro das várias instituições europeias e entre as instituições e o cidadão. Várias associações internacionais, como a PLAIN, Clarity Internacional e Center for Plain Language vão mais longe e posicionam atualmente a linguagem clara como um direito civil.
Terminamos esta breve incursão histórica com um olhar para o futuro: está a ser preparada uma ISO (International Organization for Standardization) de linguagem clara. A previsão é que esteja finalizada ainda este ano e traga mais mobilização e, quem sabe, mais regulamentação em torno deste assunto.
O que é a linguagem clara?
Leu até aqui mas não sabe bem o que é a linguagem clara? Tentarei clarificar isso com a ajuda de uma definição bastante compreensiva dada pela Federação Internacional de Linguagem Clara:
“Uma comunicação está em linguagem clara se as palavras, a estrutura e o design forem tão esclarecedores que os leitores a quem se dirige conseguem facilmente encontrar a informação de que precisam, compreender o que encontraram e usar essa informação.”
De forma mais resumida, uma comunicação está em linguagem clara se a audiência consegue compreender a informação na primeira vez que a lê ou ouve.
Características da linguagem clara
Escrevi sobre esta questão noutro artigo, que o(a) convido a ler. Alguns princípios que caracterizam a linguagem clara são:
- Recorrer a palavras conhecidas, em oposição a termos técnicos e complexos;
- Privilegiar a voz ativa e as formulações positivas;
- Priorizar e organizar a informação;
- Dividir a informação em partes mais fáceis de assimilar;
- Usar uma linguagem mais conversacional;
- Centrar a informação nas necessidades do leitor/utilizador;
- Utilizar um design e imagens que facilitam a navegação e compreensão da informação.
Ou seja, a linguagem clara atua ao nível das palavras e frases, escolha de conteúdos, organização de ideias, design, tom de voz.
Outra característica importante da linguagem clara é o facto desta propor uma metodologia de co-construção, na qual, idealmente, participam também os utilizadores da informação. Se o objetivo é facilitar o acesso, a compreensão e uso da informação, quem melhor do que os respetivos utilizadores para nos dizerem se essa meta é alcançada? Assim, para escrever em linguagem clara não basta ter sempre o leitor em mente, é preciso incluí-lo na conceção da informação, ouvi-lo e incorporar as suas necessidades e perceções.
Recomendações do uso da linguagem clara na saúde
Kristine Sorensen define literacia em saúde como:
“O conhecimento, motivação e competências para aceder, compreender, avaliar e aplicar informação para tomar decisões diárias sobre cuidados de saúde, prevenção de doenças e promoção da saúde, para manter e melhorar a qualidade de vida durante todo o ciclo de vida”.
Por sua vez, a linguagem clara preconiza informação mais fácil de encontrar, de compreender e de usar. As semelhanças não são coincidências: a linguagem clara é uma importante aliada da literacia em saúde, pois apresenta a informação de uma forma relevante, ajustada e promotora da literacia em saúde.
De facto, a Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) propõe a adoção de Precauções Universais de Literacia em Saúde, baseadas no pressuposto de que qualquer pessoa pode ter baixa literacia em saúde. Nestas Precauções Universais, a recomendação da linguagem clara surge de forma consistente como estratégia para melhorar a leitura, usabilidade, design, acessibilidade e credibilidade dos materiais de saúde, intervindo não só ao simplificar a informação como também ao facilitar a navegação no sistema de saúde e a obtenção de resultados de saúde.
Já no relatório “Health Literacy: the solid facts”, em contexto de sistemas de saúde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propõe a criação de políticas que promovam a literacia em saúde em todos os materiais de comunicação (escritos, multimédia, digitais) como primeira resposta à literacia em saúde. Tal inclui utilizar as orientações da linguagem clara ao nível das palavras, frases, organização, design e teste junto do público-alvo.
A Agência Europeia do Medicamento (EMA) também reconhece a importância da linguagem clara, tendo publicado, este ano, o documento “EMA Medical Terms Simplifier — Plain-language description of medical terms related to medicines use“, onde traduz cerca de 1000 termos médicos em vocabulário comum.
Também de alta relevância é a obrigação, estabelecida pelo Regulamento Europeu 536/2014, dos promotores de ensaios clínicos publicarem os resultados dos mesmos num formato compreendido pela população não especialista, num esforço de aumentar a transparência e propiciar a tomada de decisões devidamente informadas.
Como vimos, várias organizações sonantes defendem (ou obrigam) o uso de linguagem clara em diversos contextos de saúde. De seguida ficará a conhecer os seus benefícios.
A linguagem clara faz bem à saúde
As recomendações feitas por estas influentes instituições devem-se às vantagens de usar a linguagem clara na saúde. Na sua tese de doutoramento, Rosa Pimentel refere os seguintes benefícios:
- Melhora a compreensão da informação de saúde;
- Contribui para a segurança do doente;
- Promove a decisão partilhada entre profissionais de saúde e pacientes;
- Aumenta a adesão aos tratamentos;
- Previne o agravamento de condições de saúde;
- Permite a elaboração de consentimentos informados mais esclarecedores;
- Aumenta o rigor dos diagnósticos;
- Fornece a informação conforme as necessidades do público;
- Promove a literacia em saúde.
Adicionalmente, vários estudos mostram que boa comunicação entre o médico e o doente aumenta os níveis de satisfação, adesão ao tratamento e resultados de saúde. Para este desfecho, a comunicação usando linguagem clara é fundamental, o que resulta das competências de comunicação do profissional de saúde.
Por fim, a linguagem clara aumenta a equidade na saúde, pois oferece a possibilidade de adaptar a informação ao público-alvo, ajustando-a às necessidade das pessoas com menos e com mais literacia em saúde.
Aplicação (ou não) da linguagem clara na saúde
A linguagem clara enquadra-se nos diferentes contextos da comunicação em saúde – materiais escritos, comunicação interpessoal com os doentes, informação disponibilizada em canais digitais, informação sobre serviços de saúde, etc. – mas, embora tenha marcados benefícios e seja recomendada ao mais alto nível, não é suficientemente usada. Segundo a OMS, mais de 1500 estudos indicam que diversos tipos de materiais de saúde estão “mal desenhados, mal escritos e são orientados para uma audiência muito sofisticada”. Os trabalhos de Rima Rudd que referi na introdução também evidenciam este dilema.
Para lhe dar exemplos concretos apresentarei 3 estudos, em várias áreas da Medicina, em que a complexidade e adequação da informação foi avaliada por meio de fórmulas de lecturabilidade – ie. fórmulas que estimam a escolaridade necessária para compreender a informação – ou pela metodologia SAM (Suitability Assessment of Materials) de Doak e colegas.
Estudo 1
Readability of patient education materials in ophthalmology: a single-institution study and systematic review
Esta revisão sistemática, realizada por Williams e colegas e publicada em 2016, incluiu 13 estudos que avaliaram um total de 950 materiais educativos para doentes de oftalmologia. A análise conjunta dos resultados de lecturabilidade indicou que os materiais estavam escritos para um nível de escolaridade de 11º ano, sendo que vários autores recomendam que os materiais educativos devem ser adequados para um nível de escolaridade entre o 6º e 7º ano.
Os autores também avaliaram materiais da sua instituição (Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh), recorrendo ao instrumento SAM, antes e após melhorarem esses materiais de acordo com diversas diretrizes. Antes da edição os materiais tinham um nível de lecturabilidade adequado para o 10º ano e uma classificação de “adequado” pelo instrumento SAM. Após a edição estavam adequados para o 6º ano de escolaridade e obtiveram uma classificação SAM de “superior”.
Os autores concluíram que os materiais educativos de oftalmologia estavam escritos numa linguagem difícil de compreender e que aplicar as orientações propostas pela literacia em saúde e a linguagem clara tornou o conteúdo mais mais adequado e mais fácil de ler.
Estudo 2
Readability of Online Health Information: A Meta-Narrative Systematic Review
A meta-análise levada a cabo por Daraz e equipa em 2018 avaliou 157 estudos que reportaram a lecturabilidade de 7891 websites do Canadá e Estados Unidos. A média dos resultados oscilou entre o 10º e 15º ano de escolaridade, dependendo da fórmula usada. Quando os autores estratificaram por especialidades médicas, obtiveram o mesmo resultado.
A equipa de investigação concluiu que a lecturabilidade dos websites analisados era desadequada para o público e que são necessários esforços para a melhorar, pois informação de saúde difícil de ler e entender pode levar a desinformação e ter efeitos negativos na saúde.
Estudo 3
Contribuição para o estudo da leitura de folhetos informativos nas farmácias Portuguesas
Em Portugal este tipo de estudos não abunda. Refiro aqui o trabalho de Cavaco e Várzea, publicado em 2010, em que estudaram a lecturabilidade de 4 folhetos informativos distribuídos nas Farmácias Portuguesas. Em média foi necessária uma escolaridade de 9 anos para compreender estes folhetos. Tendo em conta que muitos utentes das farmácias são idosos, concluem os autores que os folhetos podem são ter a utilidade para a qual foram construídos, pois podem não ser totalmente compreendidos pela população a quem se destinam.
Note que estes trabalhos salientam o problema da complexidade da linguagem. Outros estudos referem a desadequação ao nível da organização da informação, do uso de imagens e design, assim como das exigências de numeracia e foco no conhecimento e não no comportamento, entre outros fatores considerados pela linguagem clara para desenvolver materiais centrados na audiência.
Conclusão
A afirmação da linguagem clara tornou-se mais evidente por volta dos anos 40. Na sua essência, pretende tornar a informação mais fácil de ler, entender e usar. Assim, linguagem clara não é uma tarefa, custo ou responsabilidade adicionais, é uma estratégia positiva, benéfica e inclusiva, que ajuda as pessoas a compreender os seus direitos, responsabilidades e opções, o que é fundamental para a nossa saúde.
Neste âmbito, embora as recomendações do uso da linguagem clara na saúde sejam fortes, as evidências mostram que a mudança de um paradigma biomédico e centrado na informação para um modelo centrado na pessoa e na ação ainda não está estabelecida. Mais formação e sensibilização dos profissionais da área poderá catalisar esta mudança.
This approach includes plain-language initiatives as a means of providing meaningful, reliable, simple and practical information for citizens, patients and consumers.
Health Literacy: the solid facts (OMS, 2013)
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