Comunicação de riscos em saúde:
a ponte entre o especialista e o público
19 janeiro 2021, PATRÍCIA RODRIGUES
O José tem 40 anos e fuma há 20. Perdeu a conta ao número de vezes que ouviu frases como “fumar mata”, “estás a dar cabo da saúde” ou “tens de deixar de fumar”. Na verdade, já nem as ouve e, no fundo, acredita que não lhe vai acontecer nada. Anda com o maço de tabaco numa bolsa para não ver as imagens que lá colocaram, pois considera serem desagradáveis e desnecessárias. Já tentou deixar de fumar, mas nunca foi bem-sucedido.
Conhece alguém parecido com o José? O hábito tabágico é paradigmático em comunicação de riscos em saúde, onde verificamos que falar sobre a longa lista dos riscos de fumar é insuficiente para mudar crenças ou comportamentos.
A comunicação de riscos em saúde é uma área fundamental na comunicação em saúde e na saúde pública. A eficácia da comunicação de riscos em saúde é atualmente considerada crucial para a prevenção de doenças e promoção de saúde, pois ajuda a melhorar o entendimento do público sobre um problema ou comportamento, de forma a promover as ações corretas e informadas.
O que é a comunicação de riscos?
A comunicação é um processo no qual as pessoas trocam informação com o objetivo de obter um entendimento comum. Implica um emissor, um recetor, uma mensagem e feedback mútuo. Ou seja, as pessoas precisam trabalhar em conjunto para que aconteça a comunicação, e não apenas a emissão de informação.
De forma análoga, de acordo com a Society for Risk Analysis, a comunicação de riscos é:
“O intercâmbio ou partilha de conhecimento, informação e dados relacionados com o risco, dentro de e entre diferentes grupos-alvo, tais como legisladores, reguladores, stakeholders, consumidores, media e público em geral.”
Por sua vez, a Organização Mundial de Saúde considera que a comunicação de riscos é:
“A troca em tempo real de informação, conselhos e opiniões entre especialistas, líderes e população que está numa situação de risco de saúde, económico ou de bem-estar.”
Em ambas as definições está patente que a comunicação de riscos em saúde é o processo de aproximar o conhecimento científico ao conhecimento da população. Em Saúde Pública, tal significa envolver a população e dar resposta às suas dúvidas e necessidades, assim como transmitir informação-chave de saúde. Já em ambiente de conversa entre profissional de saúde e doente, exige conhecer, da mesma forma, o doente que recebe a informação, ouvi-lo e envolvê-lo no processo terapêutico.
Para além de acontecer na área da saúde, a comunicação de riscos ocorre na área alimentar, química, ambiental, entre outras. É um processo que decorre ao longo do tempo e não um evento pontual. Dessa forma, os seus resultados são cumulativos e graduais.
O que é um risco?
Como definiria risco? Ou melhor, como explicaria a uma pessoa não especialista na área da saúde o que é um risco de saúde?
Esta breve reflexão permite perceber que este é um conceito deveras complexo e que tem um significado diferente de pessoa para pessoa. De acordo com a Society for Risk Analysis, risco é:
“O potencial/probabilidade de ocorrência de consequências indesejáveis e negativas resultantes de um evento.”
Risco e perigo podem ser utilizados de forma indiferenciada, mas na verdade não têm o mesmo significado. Perigo é qualquer coisa que pode causar dano. O risco é a probabilidade de acontecer esse dano. No caso do José, o perigo é fumar e o risco é desenvolver cancro do pulmão, por exemplo.
Os dois pontos de vista sobre o risco: avaliação e perceção de riscos
Conforme vimos acima, a comunicação envolve dois intervenientes. Na comunicação de riscos em saúde esses intervenientes são os especialistas e os não especialistas (público em geral), entre os quais a ponte se estabelece.
Os especialistas fazem uma avaliação de risco, definida como:
“Um processo sistemático tendo por objetivo compreender a natureza do risco, caraterizar e descrever o risco com base no conhecimento disponível”.
(Society for Risk Analysis)
Por exemplo, no caso do José os especialistas que refiro são o médico de família, o enfermeiro, o farmacêutico, entre outros. Estes profissionais fazem uma análise sistematizada e científica do risco recorrendo a indicadores numéricos, como o número de fumadores que desenvolve cancro do pulmão.
As pessoas não especialistas/público leigo, como o José, não fazem uma avaliação do risco nestes moldes. Fazem sim uma perceção de risco, definida como:
“A avaliação ou julgamento subjetivo do risco realizado por uma pessoa.”
(Society for Risk Analysis)
A perceção de risco é a forma como as pessoas percebem e vivenciam uma situação que pode ser considerada perigosa. O resultado desta perceção de risco é um determinado nível de consciência do risco, o qual determina as ações e precauções que as pessoas vão tomar para mitigar a situação.
Em suma, enquanto que a perceção de risco varia de pessoa para pessoa, a avaliação de risco segue uma metodologia sistemática e científica.
Como as pessoas percecionam o risco?
Para analisarem o risco as pessoas recorrem às suas perceções subjetivas, ideias pré-concebidas, crenças, normas culturais, emoções desencadeadas, experiências passadas, confiança nas instituições ou no comunicador, entre outros fatores. É um processo complexo, dinâmico e multifatorial.
As Ciências Comportamentais fornecem modelos que explicam a forma como a população em geral perceciona o risco. Paul Slovic, professor e investigador da Universidade de Oregon, definiu dois fatores que influenciam as perceções de risco:
Fator 1 – Nível de ameaça
O risco pode ser percebido como muito ameaçador ou pouco ameaçador.
Fator 2 – Nível de conhecimento
Se o risco é conhecido ou desconhecido.
De acordo com este modelo, o risco percecionado é maior quando é pouco conhecido ou é muito ameaçador (tem grande potencial catastrófico). Um exemplo poderá ser um acidente nuclear.
Por outro lado, o risco percecionado é menor se este for muito conhecido e considerado pouco ameaçador. Poderá ser o caso do José, que fuma há 20 anos.
Slovic aprofundou esta ideia e considerou que a perceção do risco é feita tendo em conta vários fatores, entre os quais:
- Se a exposição é voluntária
- Se o efeito é imediato
- Se o risco é conhecido por quem está exposto a ele
- O que a ciência sabe sobre o risco
- Se o risco é controlável
- Se o risco é novo
- Se o risco tem grande potencial catastrófico
- Se é muito ameaçador
- Qual a severidade das consequências
Esta é uma das múltiplas abordagens a este tema, que permite perceber como as pessoas tecem julgamentos sobre o risco e decidem as ações a tomar. Este é um conhecimento determinante para comunicar de forma eficaz. Sem saber o que as pessoas pensam sobre o risco e como respondem a ele, toda a estratégia poderá cair no vazio.

Qual o objetivo da comunicação de riscos?
Dependendo da situação, do contexto em que ela acontece e do público-alvo, a comunicação de riscos tem como objetivo geral estabelecer um entendimento convergente entre a avaliação de riscos (especialistas) e perceção de riscos (leigos). Atua como a ponte entre estes dois grupos. Ao conhecermos qual é a perceção do risco por parte da população em geral conseguiremos dar a informação ou desenvolver as competências são necessárias para uma melhor resposta à situação vigente.
Como objetivos específicos, a comunicação de riscos pretende:
- Conhecer qual é a perceção do risco por parte da população;
- Reduzir o desfasamento entre a avaliação de riscos (especialistas) e perceção de riscos (leigos);
- Alterar a consciência do risco;
- Alterar crenças ou conhecimentos erróneos;
- Aumentar a literacia científica assim com a literacia em saúde;
- Promover decisões informadas;
- Levar à alteração de um comportamento, considerado de risco;
- Partilhar informação vital para salvar vidas, proteger a saúde ou minimizar o dano;
- Combater a desinformação;
- Estabelecer a confiança e a credibilidade das instituições.
Como comunicar com o público sobre riscos em saúde?
A comunicação de riscos é uma área de estudo e pesquisa e não existe uma única fórmula ou modelo. No entanto, podemos congregar algumas estratégias para aumentar o sucesso da comunicação, que descrevo de seguida.
- Público-alvo
Para que a comunicação de riscos seja eficaz é fundamental conhecer as perceções do risco do grupo-alvo. É necessário saber se as pessoas conhecem e aceitam o risco, que crenças têm sobre ele, se estão motivadas para a ação e mudança de comportamentos. Esta e outras informações vão determinar o conteúdo e forma da comunicação. - Comunicador
A comunicação de riscos deve ser realizada por especialistas, tal como cientistas ou profissionais de saúde. Infelizmente, durante a pandemia por COVID-19 temos visto políticos a fazer comunicação de riscos em saúde, ou pelo menos a tentar, pois, não estando treinados nesta área, acabam por cometer erros que prejudicam a situação pandémica. - Confiança
A comunicação de riscos passa necessariamente pelo filtro da confiança na fonte ou no comunicador. Construir e fortalecer a confiança no comunicador ou instituição é, por isso, determinante. - Linguagem
A forma como os especialistas em saúde comunicam riscos condiciona a perceção do risco, assim como as consequentes decisões e ações. Assim, é importante comunicar numa linguagem acessível ao público não especialista e dar-lhe a informação que é relevante para ele, que ele consegue entender e aplicar. - Capacitação
A comunicação não deve apenas descrever o perigo ou o risco, deve desenvolver competências e capacidades na população-alvo, para que seja mais capaz de lidar com os desafios. - Evidência científica
A comunicação de riscos em saúde deve ser baseada na evidência científica. Aqui inclui-se o que a ciência sabe e o que as teorias sociais e comportamentais recomendam como a melhor estratégia para obter um determinado resultado. Comunicar riscos não é “achar que funciona” é recorrer à ciência para saber o que funciona. - Objetivos a longo prazo
A comunicação de riscos em saúde deve ter objetivos a longo prazo. Trata-se de um processo e não de um evento. Infelizmente acontece o contrário demasiadas vezes. Ações pontuais têm resultados irrisórios e não constituem a comunicação de riscos que aqui abordo. - Estratégia e Avaliação
A comunicação de riscos em saúde deve ter uma estratégia bem definida que inclua mecanismos de avaliação de resultados. A avaliação é fundamental e permite perceber o impacto que a comunicação está ter, fazer ajustes, definir boas práticas, definir novas estratégias e aprender.
Erros na comunicação de riscos em saúde
Para terminar gostaria de referir brevemente alguns erros da comunicação de riscos em saúde, muitos dos quais têm sido repetidos nos últimos meses.
Erros quanto ao público-alvo:
- Assumir que se sabe o que as pessoas precisam saber e qual é a sua perceção de risco;
- Não conhecer a audiência a quem se destina a comunicação;
- Não considerar os fatores psicológicos, mentais e sociais do público-alvo;
Erros de conteúdo:
- Utilizar linguagem muito técnica, não adaptada ao público-alvo;
- Não considerar os níveis de literacia e numeracia em saúde da população-alvo;
- Comunicar demasiada informação;
- Não dar resposta às dúvidas e necessidades do público-alvo;
- Comunicar de forma ambígua, pouco rigorosa ou pouco consistente;
- Não dar soluções ou medidas a adotar ou estas serem pouco específicas;
Erros de estratégia:
- Não adaptar as mensagens de risco ao público-alvo;
- Não testar as mensagens e conteúdos da comunicação;
- Utilizar o apelo ao medo como forma padrão de comunicar riscos em saúde;
- Não considerar o ambiente / circunstâncias em que se comunica;
Outros erros:
- Falta de confiança no comunicador;
- Conflito entre especialistas;
- Má escolha do canal de comunicação.
Se é profissional de saúde ou faz comunicação de riscos em saúde desafio-o(a) a olhar para a sua prática e a identificar estes erros.
Cada vez que comunicamos mal, perdemos uma oportunidade única. Por outro lado, ao aperfeiçoarmos a nossa comunicação de riscos conseguiremos ajudar mais pessoas como o José a compreenderem melhor os seus riscos de saúde, a mudarem os seus comportamentos e a melhorarem a sua saúde.
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“Effective communication of risk is a central component of any strategy for
public health protection.“
Health Protection Network – Health Protection Scotland
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