Apelo ao medo como estratégia de comunicação em saúde: erro ou acerto?
17 maio 2021, PATRÍCIA RODRIGUES

O uso do medo é comum em campanhas de saúde. Temos o exemplo das fotografias chocantes nas caixas de tabaco, das imagens dramáticas de acidentes de trânsito e até de comunicações relacionadas com a pandemia por COVID19. Mas será que desencadear uma resposta emocional e assustar as pessoas produz os efeitos desejados? O que nos diz a teoria e a evidência sobre esta temática?
A questão do apelo ao medo é complexa e multifatorial. Tentarei simplificar o tema e enquadrá-lo dentro dos limites deste artigo, correndo o risco de deixar de fora pontos de vista que possa considerar relevantes. Caso tenha interesse, poderá aprofundar o assunto com recursos aos artigos mencionados e à bibliografia adicional.
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Exemplos de apelo ao medo
Quem nunca usou o medo para desencadear um comportamento? Acreditamos intuitivamente que assustar as pessoas com as consequências negativas do seu comportamento faz com que elas mudem. Vemos o reflexo disto em vários cenários do nosso dia a dia:
Em casa: “Se não comeres tudo chamo o senhor polícia!”
Na escola: “Quem falhar na frequência tem de fazer o exame final.”
No supermercado: “Últimas unidades a preço reduzido!”
O mesmo acontece na área da saúde. De facto, muitas mensagens e campanhas sobre riscos de saúde utilizam o apelo ao medo. As duas imagens abaixo são apenas alguns exemplos, estou certa que se lembrará de outros.
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Talvez esteja a pensar “Mas se não for assim as pessoas não mudam!”. É precisamente essa ideia que este texto questiona. Como não quero deixá-lo(a) à espera pelo fim do artigo para obter a resposta à pergunta do título, adianto que, na maioria dos casos, a estratégia do medo é considerada um erro.
Está surpreendido(a)?
Não sou eu que o digo, esta é a conclusão de diversos artigos de revisão e meta-análises que mencionarei adiante.
Agora que tenho (espero) a sua atenção, vamos aos argumentos.
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Um pouco de teoria
O apelo ao medo é uma mensagem persuasiva que origina medo ao apresentar as consequências negativas que podem ocorrer caso uma determinada ação não seja adotada (Witte, 2001). É uma estratégia de comunicação que tem duas componentes: informação sobre a ameaça e a resposta recomendada.
Vários modelos teóricos abordam o uso do medo em saúde, dois dos mais conhecidos são a Teoria de Motivação à Proteção (Protection Motivation Theory) e o Modelo de Resposta Paralela Alargado (Extended Parallel Process Model).
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Modelo de Motivação à Proteção
O Modelo de Motivação à Proteção foi desenvolvido por Donald Rogers (1983) e considera que a intenção de realizar um comportamento recomendado depende da motivação à proteção. Por sua vez, esta resulta de processos cognitivos quanto à severidade percebida, expectativa de exposição e crença na eficácia do comportamento protetor. Assim, para ativar estes processos cognitivos que levam a uma atitude de mudança, as mensagens sobre riscos de saúde devem ter três componentes: a dimensão da nocividade da ameaça, probabilidade de ocorrência da ameaça e eficácia do comportamento recomendado.
Por exemplo, de acordo com esta teoria, se uma mensagem sobre os riscos da ingestão de sal o(a) fizerem sentir que elevada ingestão de sal causa hipertensão arterial, que as consequências da hipertensão são graves (como enfarte cardíaco ou acidente vascular cerebral) e que o comportamento proposto (a redução da ingestão de sal) é eficaz na prevenção da hipertensão, então terá motivação para fazer as mudanças na sua alimentação.
No entanto, por falhar em incluir a auto-eficácia e as respostas adaptativas à ameaça, duas críticas que foram feitas a esta abordagem, Rogers atualizou a sua teoria para uma versão mais complexa que postula que a motivação de proteção resulta de dois processos cognitivos:
– Avaliação da ameaça: uma ponderação entre recompensas intrínsecas, recompensas extrínsecas, severidade e vulnerabilidade;
– Avaliação do coping: uma ponderação entre a eficácia da resposta, auto-eficácia e custos da resposta.
O medo tem pouco relevo nesta teoria, está associado à perceção de elevada severidade da ameaça, mas não é esta emoção que gera a ação. Nesta teoria, os processos cognitivos são os mediadores da intenção de mudança.
Em resumo, para Rogers, se a severidade, vulnerabilidade, eficácia da resposta e auto-eficácia são consideradas elevadas, mais facilmente as pessoas aderem ao comportamento recomendado.
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Modelo de Resposta Paralela Alargado
O Modelo de Resposta Paralela Alargado, proposto por Witte e colaboradores (1992), combina várias teorias para explicar as respostas às ameaças de saúde. Propõe que as mensagens de risco em saúde originam dois processos cognitivos: o primeiro é a avaliação da ameaça (que inclui avaliação da severidade e de suscetibilidade), seguido da avaliação da eficácia (que inclui avaliação da ação recomendada e da auto-eficácia). Estes processos levam a um de três resultados:
– Ausência de resposta, devido à perceção de não suscetibilidade e/ou baixa severidade da ameaça.
– Resposta de controlo do perigo, derivada de alta perceção de ameaça e de eficácia, o que significa aceitação da mensagem comunicada.
– Resposta de controlo do medo, devido à alta perceção de ameaça, mas baixa perceção de eficácia, o que leva o indivíduo a procurar uma forma de lidar com o medo, ignorando a mensagem de saúde. Estratégias de controlo do medo incluem evitar o assunto, negação ou reatividade (exemplo: ficar zangado quando se fala do tema).
Recorrendo ao exemplo dos riscos da ingestão de sal, perante uma comunicação, a primeira coisa que faz é pensar: “Estou em risco de hipertensão arterial?” (vulnerabilidade) e “As consequências são graves?” (severidade). Se considerar que ameaça é trivial e não se aplica ao seu caso, não irá dar importância ao restante conteúdo da mensagem e a comunicação não terá nenhum efeito. Por outro lado, se considerar que é relevante para si, isso irá causar algum receio/medo que leva à segunda etapa: “Reduzir o sal é eficaz para prevenir a hipertensão e suas consequências? Sou capaz de o fazer?” Nesta fase, a perceção da eficácia vai determinar o resultado da comunicação: se percecionar elevada eficácia, irá estar motivado para reduzir o sal; se percecionar baixa eficácia a sua motivação vai estar orientada para controlar o medo.
Em resumo, se o controlo do medo é mais forte, a pessoa procura uma resposta para o seu medo e não uma solução para a ameaça. Este modelo diz também que a mensagem deve ter componentes de auto-eficácia, eficácia da resposta, suscetibilidade e severidade.
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A evidência científica
Embora as teorias postulem que existe uma relação entre a comunicação sobre a ameaça e a mudança do comportamento, os estudos nem sempre são concordantes quanto a essa relação. Peters e colaboradores (2013) propõem duas hipóteses para explicar este fenómeno: por um lado, muitos estudos estão baseados na intenção para realizar um comportamento, o que nem sempre se reflete na sua execução; por outro lado, os resultados negativos raramente são publicados — designado viés de publicação — o que compromete o corpo de conhecimento disponível para tirar conclusões. Por exemplo, numa população com baixa eficácia, a manipulação da ameaça tenderá a não ativar um comportamento e o estudo não será publicado. Acrescentam também que nos últimos 60 anos foram publicados poucos estudos com forte qualidade experimental e científica, o que evidencia a necessidade de pesquisa neste domínio, particularmente de estudos que estabeleçam a relação entre o uso do apelo ao medo e o seu resultado no comportamento, e não apenas na motivação ou intenção, assim como a avaliação da eficácia pré-comunicação.
Estes investigadores fizeram também uma meta-análise com critérios de inclusão rigorosos. Em linha com as teorias sobre a temática, os autores concluíram que a ameaça só tem efeito se a eficácia for alta e que a eficácia só tem um efeito se a ameaça for elevada. Além disso, identificaram efeitos negativos de informação sobre a ameaça quando a eficácia percebida é baixa. Assim, recomendam que a comunicação puramente emocional sobre a ameaça — como as imagens dos maços de cigarros — só deve ser usada depois de se comprovar que a eficácia da resposta e a auto-eficácia estão bem estabelecidas no público-alvo (ou após implementar uma intervenção para o efeito) e que a centrar a comunicação nestes dois últimos fatores é melhor do que focar na ameaça.
No seu artigo “Sixty years of fear appeal research: current state of the evidence”, Ruiter e colaboradores apresentam um resumo de seis meta-análises publicadas entre 2000 e 2012, incluindo a acima mencionada. Concluem também que é mais importante dar informação sobre a eficácia da resposta e como aumentar a auto-eficácia, do que dar informação sobre a ameaça para aumentar a perceção do risco e desencadear medo. De facto, o apelo ao medo pode originar respostas defensivas que não são desejáveis. Recomendam o uso de outras estratégias de mudança de comportamentos, como dar instruções específicas e capacitadoras da ação.
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Existe consenso sobre o apelo ao medo?
Este é um assunto que polariza opiniões, não existindo acordo generalizado sobre o apelo ao medo como estratégia de comunicação em saúde.
Para dar o exemplo de um estudo com uma posição contrária, refiro a meta-análise realizada por Tannenbaum e colaboradores, em 2015, que concluem que os apelos ao medo influenciam positivamente atitudes, intenções e comportamentos, e que são mais eficazes quando a comunicação está direcionada para despoletar o medo, inclui mensagens de eficácia e salienta a suscetibilidade e severidade do público-alvo. Adicionalmente, não identificam o efeito ricochete do uso do medo e sugerem que esta estratégia é mais eficaz nas mulheres.
Porém, num artigo de revisão mais recente, de 2018, Kok e equipa são bastante incisivos quando afirmam que “as pessoas acreditam erradamente que o apelo ao medo promove comportamentos de saúde”. Concluem que o apelo ao medo só é eficaz em casos de elevada auto-eficácia, o que é uma condição raramente encontrada, por isso não recomendam a sua utilização.
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Análise de exemplos
Muitas campanhas de saúde continuam baseadas em informação e imagens sobre a ameaça e suas consequências, dando poucas orientações sobre a eficácia do comportamento e de como aumentar a auto-eficácia. A este propósito, volto aos exemplos no início do artigo. Repare que, em ambos os casos, a atenção está colocada na ameaça e respetivas consequências e que não são dadas instruções claras.
No caso da Imagem 2, parte de uma campanha de incluía também outdoors, aponto as seguintes falhas:
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- A ideia de ser uma escolha está errada.
Ninguém escolhe a segunda opção, assim como ninguém escolhe ficar doente por cancro, por exemplo.
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- Está baseada no apelo ao medo
Como vimos, sem uma componente de eficácia, esta abordagem pode gerar comportamentos de controlo do medo, e não de proteção da ameaça.
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- É desprovida de empatia
Na fase em que esta campanha estava em vigor (janeiro/fevereiro deste ano) a crise pandémica estava no seu auge. As pessoas estavam cansadas física e emocionalmente. Teria sido mais benéfico transmitir as regras a cumprir e dar mensagens de coragem, resiliência e força, de forma a aumentar a auto-eficácia.
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- Não dá orientações para a ação
Neste caso a orientação está implícita e camuflada. Deveria estar explícita e esse devia ser o tema central.
Lembro ainda a curta-metragem “Uma princesa não fuma”, que foi alvo de críticas a vários níveis, e que constitui um exemplo de apelo ao medo sem contributos adicionais. Aliás, ainda acrescenta a (desnecessária) culpa ao reportório de argumentos.
Mas existem alternativas e bons exemplos! Nos materiais mais recentes da DGS (Imagens 3 e 4) o tom muda totalmente a comunicação passa a estar centrada no comportamento-alvo, com orientações claras e simples, é específica para o contexto e é positiva. A escolha das imagens também é muito feliz pois, apesar das máscaras, percebe-se que as pessoas estão a sorrir.
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Na área do cancro a exposição das consequências do comportamento é uma abordagem muito frequente. Exemplos são o uso de imagens das caixas de tabaco, já referido, os danos de exposição solar excessiva, ou a vacinação contra o vírus que causa cancro do colo do útero. A propósito do cancro de pele, partilho abaixo outro exemplo centrado na auto-eficácia através de indicações claras e exequíveis. Trata-se de uma comunicação da Associação Portuguesa de Cancro Cutâneo a propósito do Dia do Euromelanoma e Dia dos Cancros da Pele em 2020.
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Conclusão
Apesar de muitos estudos defenderem o contrário, o uso de mensagens persuasivas com o objetivo de causar medo continua a ser comum em saúde. A objeção feita a esta estratégia prende-se com a ativação de comportamentos defensivos, como negação, fuga à informação ou reatividade. Se o apelo ao medo é escolhido, deve ser acompanhado de esforços para demonstrar a eficácia do comportamento recomendado e para aumentar a auto-eficácia da população. Porém, outros caminhos podem ser preteridos, sendo que a compreensão da audiência quanto às suas necessidades, motivações e perceções, é o ponto de partida fundamental.
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“Primum non nocere.“
(Em primeiro lugar, não causar danos.)
Hipócrates
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