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Falhas de comunicação em saúde: contextos de risco, consequências e (algumas) soluções
20 agosto 2022 | Revisto a 11 julho 2024 | PATRÍCIA RODRIGUES

Um relatório de 2017 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCED), denominado The economics of patient safety coloca a falta de comunicação e informação como uma das principais causas de efeitos adversos que têm lugar ao longo do percurso do doente. O mesmo documento recomenda que “as estratégias para melhorar a segurança do doente devem dar resposta às questões de comunicação — dentro do microssistema clínico, ao longo das organizações e ao longo de todo o sistema.”
A comunicação não tem um papel determinante apenas para a segurança do doente — é essencial para o sucesso dos cuidados de saúde. Assim, vale a pena olhar com mais detalhe para comunicação, particularmente, para as falhas de comunicação.
Neste artigo abordo os contextos, causas e consequências de comunicação ineficaz em saúde, dando exemplos de trabalhos que ilustram essa realidade. Termino com algumas sugestões de caminhos a seguir para evitar os lapsos na comunicação.
Contextos onde existe maior risco de falhas de comunicação
Uma pergunta que podemos colocar quando falamos de falhas de comunicação na saúde é: onde é que essas falhas acontecem? A seguir, procuro responder a essa pergunta, com o auxílio de trabalhos publicados.
Começo por referir um relatório de 2016, feito pelo departamento The Risk Management Foundation of the Harvard Medical Institutions Incorporated, nos Estados Unidos da América. Este documento resultou da análise de mais de 23 000 reclamações e processos judiciais por negligência médica e mostrou que 30% das queixas por más práticas clínicas estavam relacionadas com má comunicação. Dessas queixas, 48% aconteceu em ambulatório, 44% em internamento e 8% no serviço de urgência. Uma análise mais precisa mostrou que foi no contexto cirúrgico que ocorreram mais reclamações atribuíveis a falha de comunicação (27%), seguido da medicina geral (13%), enfermagem (9%) e obstetrícia (5%).
Outra análise que importa fazer é determinar se a falha de comunicação foi mais comum na interação entre profissionais ou entre estes e o doente. Conforme o mesmo relatório, 57% das queixas estavam associadas a má comunicação entre profissionais de saúde e 55% a má comunicação entre estes e o doente; em 12% das queixas ambas as situações estavam descritas.
Acrescento ainda dados da Joint Commission relativos ao período 2004-2015, que atribuem à comunicação uma das principais causas de eventos sentinela; aqui inclui-se a comunicação entre a equipa clínica, com a administração e com a família ou doente.
A pergunta que se segue é: o que falha na comunicação?
O que falha na comunicação?
Conhecer as causas da ineficácia na comunicação permite implementar mudanças dirigidas para as áreas mais problemáticas. Vamos ser o que nos diz a literatura sobre essas causas.
O trabalho da Harvard Medical Institutions Incorporated dá algumas pistas: refere a informação sobre a situação do doente e a má documentação como principais motivos para a falha de comunicação entre profissionais de saúde. Quando à comunicação ineficaz entre o profissional e o doente, os motivos principais foram: consentimento informado inadequado, resposta pouco empática a uma queixa do doente e educação inadequada sobre medicamentos.
Outro trabalho, de 2018, identificou e categorizou os quatro aspetos que mais falham na comunicação, nomeadamente:
- Não manter os colegas informados ou não partilhar a informação adequada.
- Não fornecer ao doente informação ajustada e no momento certo.
- Não ouvir o doente.
- Não trabalhar de forma colaborativa com o doente, familiares ou cuidadores.
Para estas falhas contribuem principalmente fatores individuais do profissional de saúde, mas também fatores relacionados com a restante equipa e o próprio doente. Quanto a estes últimos, um White Paper da Joint Comission salienta a baixa literacia e literacia em saúde e a idade do doente, como características que podem comprometer a comunicação. Além disso, o mesmo documento refere a desadequação do plano de alta e instruções dadas ao doente, em particular devido a termos complexos e pouco familiares, não são devidamente explicados, como aspetos que originam má comunicação. Outros trabalhos referem ainda os lapsos no registo clínico do doente e medicamentos mal identificados, ou com informação insuficiente, como causas de erros na comunicação.
Até aqui referi, principalmente, fatores relacionados com a informação (má informação ou falta dela) e fatores individuais. Para Sutcliffe e colegas, outros fatores a ter em conta são a complexa dinâmica entre os profissionais de saúde, as diferenças hierárquicas, alguma ambiguidade de funções, os conflitos interpessoais, entre outros.
Como poderá verificar, a sistematização quanto ao que motiva erros na comunicação não é uniforme de autor para autor. Podemos pensar em termos das caracaterísticas pessoais dos intervenientes, na informação partilhada (ou não), na atividade em que a comunicação acontece, as estruturas organizacionais, entre outras.
Consequências de má comunicação em saúde
Tendo percorrido os contextos mais problemáticos e alguns aspetos que originam a falha na comunicação nos cuidados de saúde, vejamos agora as repercussões de tudo isto. Uma revisão da literatura feita por Vermeir e colaboradores identificou as seguintes consequências de comunicação ineficaz:
- Admissões e readmissões hospitalares que poderiam ter sido evitadas.
- Testes e tratamentos médicos desnecessários.
- Referenciação por problemas que não foram resolvidos na primeira consulta.
- Idas à farmácia sem necessidade.
- Aumento de stress no doente e no profissional de saúde.
- Vidas perdidas.
Um relatório do governo australiano sobre a realidade hospitalar do país, revelou que a má comunicação foi a responsável por 11% dos efeitos adversos evitáveis, incluindo incapacidade permanente ou morte, tanto em hospitais públicos como privados. Além disso, segundo o relatório feito pela Harvard Medical Institutions Incorporated, referido anteriormente, dos casos em que ocorreu falha de comunicação, 22% teve o desfecho mais gravoso: a morte do doente.
A baixa adesão à terapêutica, incluindo medicamentosa, erros médicos e atrasos ao acesso aos cuidados são outras consequências referidas na literatura.
Em suma, má comunicação pode prejudicar a utilização de recursos, o bem-estar do profissional de saúde, os resultados clínicos e a segurança e experiência do doente — desta, falarei mais adiante. Na secção seguinte abordarei outra consequência, que está implícita nas já referidas: o impacto financeiro.
A má comunicação aumenta as despesas com a saúde — as suas e as nossas
Um estudo de 2010, no mercado americano, estimou que os hospitais americanos desperdiçam 12 mil milhões de dólares por ano como resultado de má comunicação entre profissionais de saúde. Para um hospital de 500 camas as perdas poderão ascender a cerca de 4 milhões de dólares por ano, sendo que estas estimativas são consideradas conservadoras. A maior parte dos custos deve-se ao prolongamento da estadia hospitalar.
Como vimos antes, falhas de comunicação levam a admissões hospitalares desnecessárias, exames médicos desperdiçados, má adesão à terapêutica, queixas e litígios, entre outros. Tudo isto implica despesas que podem ser evitadas. Por exemplo, um estudo feito no Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido mostrou que, alcançando 80% de adesão à terapêutica anti-hipertensora, poupar-se-iam 100 milhões de libras por ano. E estamos a falar de uma só terapêutica.
Estes dois exemplos são limitados no tempo, na geografia e na abrangência. De facto, avaliar o impacto económico de comunicação ineficaz é um processo complexo que tem de considerar múltiplos fatores. Embora difícil, é necessário avançar nesse sentido para compreender a realidade de cada país e identificar os pontos críticos, assim como traçar planos de ação assertivos e com custo-benefício favoráveis.
A visão do doente
É muito importante considerar a experiência da pessoa, ao longo de todo o continuum dos cuidados de saúde, para a qual a comunicação tem uma grande influência: por um lado pode facilitar a vivência emocional do doente e a sua recuperação, mas por outro, também de ferir e prejudicar.
Num estudo qualitativo sobre a comunicação com doentes oncológicos, um doente referiu o seguinte:
“A comunicação faz a diferença na forma como me sinto em relação a mim mesmo e se tenho coragem de continuar. Se eu tiver uma experiência negativa, eu afasto-me e fecho-me e isso é muito prejudicial, mental e fisicamente.”
Uma dificuldade que os doentes enfrentam é terem de interagir com muitos profissionais de saúde. Por exemplo, um doente com várias comorbilidades pode ser seguido pelo médico de família, médicos especialistas, equipas de enfermagem e farmacêuticos. Cada profissional terá o seu estilo de comunicação e a sua área de atuação, às quais o doente tem de se adaptar, assim com processar informação diversa, complexa, nem sempre conciliada. Por sua vez, a experiência de um doente internado é semelhante. Nos dois casos, pela complexidade inerente à informação de saúde e à dinâmica das equipas clínicas, para não falar do próprio sistema de saúde, o doente pode ficar com uma visão pouco clara do que se passa, do que vai acontecer e o que lhe cabe fazer. O resultado pode ser insatisfação, mau desfecho clínico e uma reclamação.
Por outro lado, a experiência e perceção do doente nem sempre coincidem com a do médico. Num estudo randomizado, realizado entre 2013 e 2014, 2471 doentes internados foram convidados a avaliar a sua experiência no que respeita a segurança. Cerca de 23% dos doentes reportaram, ao todo, 1155 incidentes, sendo a comunicação a maior preocupação, mencionada em 251 dos casos. Contudo, os médicos reconheceram risco associado à comunicação em apenas 54 incidentes. Estes resultados mostram que a comunicação é muito importante para o doente e que este e o profissional de saúde têm conceções diferentes da mesma. Conciliar estas visões será um passo importante para aumentar a satisfação e segurança do doente.
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Dar mais atenção às palavras: uma reflexão sobre a importância da palavra na comunicação em saúde
(Algumas) Soluções para minimizar as falhas de comunicação em saúde
Embora o objetivo deste artigo não seja aprofundar possíveis soluções para as falhas de comunicação nos serviços de saúde, aqui ficam algumas propostas:
- Criar uma cultura de melhoria contínua da comunicação, implementando sistemas que incluam a identificação de necessidades, avaliação de resultados e feedback.
- Envolver toda a organização, desde a liderança de topo, à pessoa que interage diretamente com o utente.
- Investir em formação em competências de comunicação dos profissionais de saúde.
- Dar particular atenção aos seguintes momentos críticos: consentimentos informados, transição de cuidados e alta médica.
- Garantir o rigor dos registos clínicos.
- Melhorar a informação escrita, incluindo a que é fornecida ao doente e a que é veiculada entre profissionais de saúde.
- Na interação com o doente, considerar a sua literacia, diferenças culturais, necessidades e idade — em suma, a pessoa!
- Promover as estratégias de literacia em saúde, como o uso de linguagem clara e o método teach-back.
- Apoiar a participação do doente na decisão terapêutica.
- Fomentar a investigação na área, para que as intervenções sejam sólidas e fundamentadas na evidência.
Conclusão e um convite
Os erros de comunicação podem acontecer em diferentes momentos, tanto na comunicação entre profissionais de saúde, como entre estes e o doente/família. Além disso, muitos estudos mostram que má comunicação em saúde tem consequências nefastas para a segurança do doente, o bem-estar do profissional e o uso eficiente dos recursos. Podemos ir mais longe e dizer que má comunicação compromete todo cuidado prestado ao doente.
De acordo com McDonald:
“É seguro concluir que existe uma ligação clara entre melhor qualidade da comunicação e resultados positivos para a saúde. Esta ligação é evidente numa variedade de condições e contextos”.
Contudo, apesar destas evidências, as inadequações persistem.
Numa altura em que se se exige repensar o Sistema Nacional de Saúde, porque não repensar também a comunicação? Assim, este artigo pode também ser visto como um convite: às instituições de saúde, para reavaliarem os procedimentos em que a comunicação tem um papel preponderante; aos profissionais de saúde, para repensarem a sua interação com colegas e doentes; ao cidadão, para ser mais ativo na sua saúde — sim, a si também lhe cabe um papel na mudança.
No longer considered to be simply a patient’s right, effective communication is now accepted as an essential component of quality care and patient safety.
The Joint Commission, 2010
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