Blog Comunicar em Saúde
10 mitos sobre linguagem clara
30 Junho 2022, PATRÍCIA RODRIGUES

A linguagem clara ajuda a construir mensagens fáceis de compreender pelo público-alvo. O seu âmbito vai muito para além da saúde — o principal foco deste artigo — aplica-se em todas as áreas técnicas, burocráticas e potencialmente complexas em que o cidadão tem de se movimentar. Mais, deve ser utilizada sempre que queremos que a informação tenha o impacto desejado, o que inclui marketing e vendas.
Apesar de ser recomendada por muitas instituições de saúde, especialistas e universidades, a sua adoção tem tardado. Para tal contribui a falta de divulgação, a resistência à mudança, assim como o enraizamento de mitos. Estas conceções incorretas sobre a linguagem clara são obstáculos à sua adoção como a norma na comunicação com a população.
Neste artigo desconstruo 10 mitos sobre linguagem clara. Espero ajudá-lo(a) a repensar a sua posição em relação a esta técnica de comunicação ou mesmo ajudá-lo(a) a defender a sua implementação.
Mito 1. Em saúde não é possível escrever em linguagem clara.
“A saúde é uma área muito técnica e cheia de termos científicos, por isso não há alternativa, temos de usar essas palavras”.
Para contrapor esta afirmação apresento dois argumentos. Em primeiro lugar, escrever em linguagem clara nem sempre significa substituir os termos técnicos (vulgo jargão) por outras palavras, tudo depende da audiência, nomeadamente:
- Se é de facto necessário usar essas palavras e expressões e a audiência não as conhece, então use-as, mas esclareça o seu significado de forma acessível ao entendimento comum.
- Se a sua audiência sabe o que significam, use-as naturalmente.
- Se não é necessário recorrer a essas palavras, porque não é informação essencial, então o problema está resolvido, exclua os termos complexos.
Em segundo lugar, a linguagem simples é a melhor forma de explicar esses conceitos complexos a um público generalista — principalmente quando se trata de informação essencial para esse público! Por isso, não só é possível usar linguagem clara em saúde, como também é necessária para garantir a compreensão da informação e as escolhas comportamentais saudáveis.
Mito 2. Não há evidência que sustente o uso da linguagem clara
A linguagem clara não é uma ideia nova. No Pubmed, os primeiros artigos sobre “plain language” remontam ao início do século passado, mas foi nos anos 70 que as publicações começaram a disparar. Como resultado da consolidação da evidência que apoia a sua utilização, como já referi, muitas organizações de saúde, universidades, especialistas e associações de profissionais de saúde recomendam a sua aplicação, particularmente para responder ao problema da baixa literacia em saúde. Decerto que este não é o único caminho para resolver esta questão, mas é um contributo muito relevante.
Para ilustrar essa relevância partilho os resultados de um estudo randomizado, feito com 433 doentes com baixa literacia em saúde. Os investigadores avaliaram o efeito de um folheto redigido em linguagem simples na adesão à vacina contra a pneumonia. Os doentes que receberam esse folheto colocaram mais perguntas e participaram mais na campanha de vacinação, quando comparado com o grupo que recebeu um folheto de outro assunto. Este estudo demonstra não só que a linguagem clara tem um impacto na saúde, como também mostra a importância dos folhetos e outros conteúdos escritos para decisão informada e participativa.
A acrescentar a este exemplo, refiro as Precauções de Literacia em Saúde, um documento publicado pela Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) visando melhorar a comunicação e promover a literacia em saúde. Este manual recomenda 21 estratégias baseadas na evidência, onde se inclui a comunicação clara.
Mito 3. A linguagem clara não é precisa.
Outra objeção comum, em particular na Saúde.
Esta ideia está simplesmente errada, pois não estamos a fazer uma escolha entre a precisão e a imprecisão, mas entre complexidade e a clareza. Uma mensagem pode ser clara e precisa. Além disso, se a informação em saúde é naturalmente técnica e científica, descrevê-la com explicações complexas não ajuda quem precisa de a entender — consequentemente, o fosso entre o especialista e o público dilata-se.
Quando bem executada, a linguagem clara mantém o rigor da informação, elimina detalhes desnecessários, clarifica o jargão e concretiza conceitos abstratos, entre outras coisas. O resultado é informação ajustada, cativante e fácil de compreender.
Para demonstrar isto, vou recorrer a um exemplo retirado de um artigo sobre a facilidade de leitura dos consentimentos informados usados em ensaios clínicos. Neste artigo, encontramos um trecho original de um consentimento e uma alternativa clara para esse trecho.
Texto original:
A sua participação neste estudo é totalmente voluntária. Tem o direito de escolher não participar ou de desistir em qualquer momento do estudo sem prejuízo dos cuidados de saúde futuros.
Texto em linguagem clara:
Não tem de estar neste estudo. Pode concordar estar no estudo agora e mais tarde mudar de ideias. A sua decisão não vai afetar os seus cuidados de saúde normais. As atitudes do seu médico não vão mudar.
Como vê, não há perda de precisão nem de informação.
Mito 4. Linguagem clara infantiliza e não desenvolve a literacia.
“Mas eu assim não aumento a literacia do meu doente.” Esta objeção é muito comum e, em parte, os mitos anteriores também servem de resposta.
A linguagem clara torna um conteúdo mais fácil de compreender e adequa o conteúdo à pessoa ou público a quem nos dirigimos. Se o doente ficar a perceber algo que não compreendia ou não sabia, desenvolvemos a sua literacia em saúde. Em oposição, se o doente não perceber nada, ficamos na mesma, ou melhor, ficamos um pouco pior, porque aquele doente não levará informação que poderia ser determinante para o seu bem-estar.
Por outro lado, existe também o medo de infantilizar e até ofender o interlocutor. Não se trata de infantilizar, mas de esclarecer! Se lhe dessem a ler e assinar um contrato opaco e um contrato claro, sentir-se-ia ofendido(a) com o segundo? Como disse Tim Radford, ex-editor do jornal inglês The Guardian, “ninguém vai reclamar porque tornou um assunto muito fácil de entender”, pois ninguém quer desperdiçar de tempo e esforço desnecessário a decifrar uma informação.
Mito 5. Se usar linguagem clara, vou danificar a minha reputação de especialista.
Reputação junto de quem? Dos doentes/clientes ou dos pares?
Para refutar este mito da linguagem clara trago um exemplo de outra área incrivelmente complexa: a linguagem legal. Um trabalho de Christopher Trudeau avaliou as preferências de comunicação tanto de clientes como de não clientes de serviços de advocacia. A grande maioria das 376 pessoas que participaram, preferiram linguagem clara nos documentos de cariz legal; o mais interessante é que, quanto maior o grau académico, maior a preferência para a versão clara.
Este estudo demonstra algo que repetimos em linguagem clara: as pessoas preferem informação fácil de compreender. Ao usá-la, terá clientes mais satisfeitos, informados, interessados e cumpridores. Adicionalmente, explicar de forma clara demonstra que domina o assunto, pois é preciso conhecer muito bem um tema para conseguir explicá-lo de forma simples. Conhece aquela citação de Albert Einstein: “se você não consegue explicar algo de forma simples, não compreendeu suficientemente bem”? Eu não me atrevo a contrariar esta afirmação!
Mito 6. A linguagem clara é só para as pessoas com baixa literacia.
Como constatamos no estudo de Tim Radford, tanto as pessoas com menos literacia como as pessoas com mais literacia preferem um texto fácil de compreender — e esta ideia estende-se à comunicação científica.
Muitas revistas científicas (senão todas) têm encorajado os autores a escrever de uma forma clara. Porquê? Porque facilita a compreensão da informação e a transferência de saber de um autor para outro, para além de tornar o artigo muito mais interessante (quem já leu uma publicação que se parecia com um quebra-cabeças sabe do que falo).
Ou seja, a linguagem clara é para todos, é uma abordagem inclusiva que não deixa ninguém de parte. Se limitarmos a aplicação da linguagem clara à comunicação para certos grupos, não estaremos a fazer justiça ao seu potencial e vantagens.
Mito 7. Para usar linguagem clara basta mudar as palavras.
Lamento, mas não é assim tão simples. Criar um conteúdo em linguagem clara inclui:
- Conhecer a audiência (tal como vimos acima)
- Conhecer o assunto (também já falamos nisso)
- Definir objetivos de comunicação
- Escrever o texto
- Organizar bem a informação
- Formatar o texto
- Construir o design
- Editar, editar, editar
- Testar junto de pessoas que representam a audiência
- Rever o documento tendo em conta o feedback anterior
Assim, as palavras são apenas um aspeto do processo. Se reduzirmos a linguagem clara à substituição das palavras, fomentamos a disseminação de documentos pseudo-claros que não geram o impacto da informação bem construída. Para usar a linguagem clara é necessário desenvolver essa competência, treinar e considerar, sempre, a nossa audiência.
Mito 8. Linguagem clara é igual para todas as pessoas.
Já abordei esta ideia acima, por isso já não vai ser novidade para si.
Uma regra essencial da comunicação é que, para esta ser eficaz, tem de estar adaptada ao público a quem se destina. Ora, em linguagem clara é a mesma coisa: é necessário adaptar a informação aos leitores, aos seus interesses, às suas necessidades, à sua literacia. Além disso, escrever para um grupo de pessoas que conhece o tema exige uma abordagem, escrever para quem ouve o assunto pela primeira vez exige outra. Assim, a linguagem clara é como um fato feito à medida — terá as medidas certas para o público em questão.
Mito 9. Demora muito tempo.
Bem, isto é em parte mito e em parte verdade.
Aprender a comunicar de forma clara, como qualquer outra competência, exige tempo e dedicação, por isso envolve um investimento inicial. No entanto, com a prática será mais fácil, permitirá poupar tempo e alcançar melhores resultados.
Imagine o atendimento ao cliente de uma empresa que vende seguros de saúde, por exemplo. Após fazer o esforço inicial de converter a informação, nas suas várias formas, em linguagem clara, vai conseguir poupar em pedidos de esclarecimento, em tempo de atendimento telefónico, em reclamações e, simultaneamente, vai aumentar a satisfação do cliente e fortalecer a relação de confiança que estabelece com ele.
Sabendo isto, em 1998, o presidente americano Bill Clinton publicou um memorando sobre a redação clara no governo, onde diz que “a linguagem clara economiza tempo, esforço e dinheiro do governo e do setor privado”.
Mito 10. Sempre fizemos assim, para quê mudar?
Para terminar, um clássico! O facto de termos feito sempre assim não significa que estamos a fazer bem — pode refletir, sim, a resistência à mudança.
Um trabalho muito interessante, publicado em 2011, sintetizou a informação disponível sobre o atraso, e respetivos motivos, entre uma descoberta científica e a sua adoção na prática clínica. À data, o tempo que demorava a implementar uma boa prática demonstrada pela evidência era 17 anos. Desconheço a data do primeiro documento que recomendou o uso de linguagem clara em saúde, mas conheço documentos com mais de 17 anos que o fizeram.
Para ultrapassar esta resistência são necessários mais estudos, mais divulgação e maior envolvimento das instituições e pessoas que podem fazer a diferença. É também preciso persistência da parte de quem defende a implementação alargada da linguagem clara. Por fim, é importante, quiçá decisivo, que os cidadãos — nós — exijam informação clara, simples, transparente e ajustada às suas necessidades, na saúde e em todas as áreas determinantes para a sua vida em sociedade.
Plain language communication is part of the solution to major public health delivery problems.
Stableford & Metter (2007)
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