Blog Comunicar em Saúde
Literacia em saúde das crianças: de pequenino se torce o pepino
20 julho 2021, PATRÍCIA RODRIGUES

A perceção que temos da saúde e doença muda ao longo da vida, mas é desde tenra idade que criamos hábitos e rotinas, saudáveis ou não. Como diz o ditado “de pequenino se torce o pepino”! Por isso é tão importante olhar para o tema da literacia em saúde das crianças e começar desde cedo a fortalecer estilos de vida saudável, atuar preventivamente e construir competências em saúde.
Compreender como as crianças recebem e processam informação de saúde, quais as crenças que têm e que temas valorizam é uma etapa importante para adaptar eficazmente a mensagem a este grupo e desenvolver programas vocacionados para a educação para a saúde.
Em 2000, Nutbeam definiu literacia em saúde como as competências pessoais, cognitivas e sociais que determinam a capacidade dos indivíduos para aceder, compreender e usar informação de saúde para promover e manter uma boa saúde. Neste artigo vou centrar-me principalmente no acesso e compreensão de informação de saúde pelas crianças, recorrendo a três artigos e um capítulo de livro.
Porém, não quero criar demasiadas expectativas. Em 1999, Whaley referiu que “é necessário identificar os conteúdos das explicações sobre doenças que as crianças preferem”; em 2006, Piko e colaboradores mencionaram que “a forma como as crianças compreendem a saúde e promoção de saúde é um tópico pouco estudado”; e em 2019, Pleasant e colaboradores concluíram que “não sabemos o suficiente sobre literacia em saúde das crianças e adolescentes“.
Ou seja, há um caminho pela frente, mas também já há um caminho feito — é este que vamos analisar.
Como as crianças veem a saúde e a doença
Podemos considerar que as crianças têm uma visão simples da saúde, mas os investigadores de um estudo realizado na Hungria, em 2006, concluíram o contrário. Neste estudo foi pedido a 128 crianças, dos 8 aos 11 anos, que respondessem, por palavras ou desenhos, às seguintes perguntas:
- O que significa saúde para ti?
- Sabes o que te faz ficar doente?
- O que fazes para te manteres saudável?
- O que fazes para não ficar doente?
Piko e colaboradores concluíram que as crianças têm bastante conhecimento sobre saúde, doenças e riscos, e muitas vão além do conceito biomédico (saúde como ausência de doença), vendo a saúde como o resultado de fatores físicos, psicológicos, sociais e espirituais. Refiro o exemplo de um comentário notável de uma menina de 10 anos:
“Eu sugiro que te mexas muito, relaxes muito, comas comida saudável, não comas muito açúcar ou sal, comas muita fruta e vegetais, derivados de leite, evites carne com gordura, álcool, cigarro e drogas ilícitas.”
Por outro lado, algumas crianças deram respostas que demonstram a visão biomédica da saúde. Por exemplo, na pergunta “O que é que significa saúde para ti?”, um menino de 8 anos respondeu:
“Saúde significa que não tenho de ir ao médico.”
Outro menino, de 11 anos, disse que:
“A palavra saúde para mim significa que não estou doente.”
Em contrapartida, conforme já mencionei, outras crianças têm uma visão holística e abrangente. Ao responder à mesma questão, um menino de 11 anos mencionou que saúde é:
“Bem-estar físico e psicológico e estar alegre.”
Uma menina de 10 anos acrescenta a dimensão social ao responder que:
“Se eu estou saudável, eu vou para a escola e aproveito a companhia dos meus amigos e colegas.”
Um dado que considero muito interessante neste estudo é que as crianças referiram o estilo de vida saudável como estratégia de manutenção da saúde e prevenção de doenças. Praticar desporto, alimentação, sono e hábitos de higiene foram alguns comportamentos mencionados.
Outro dado importante diz respeito à forma como as crianças utilizam a sua vivência pessoal para compreender a causa das doenças. Neste aspeto, muitas crianças referiam as infeções, bactérias ou vírus como causa de doença, pois é a experiência que a maior parte das crianças desta idade tem.
Como falar com as crianças sobre doenças
A comunicação sobre doenças é um fator importante para a experiência que as crianças têm no sistema de saúde (consultas, tratamentos, procedimentos) e também para a sua recuperação. Em 1999, o jornal Health Communications publicou uma revisão de Bryan Whaley que pretendeu apresentar alternativas à prática comum de explicar a doença com base na sua etiologia e biologia. O autor refere que “os estudos sugerem que as crianças não compreendem mensagens desenhadas para explicar a etiologia da doença”, sugerindo que devem ser feitos mais estudos para compreender o que as crianças precisam saber.
Whaley menciona que, dada a imaturidade linguística das crianças, a seleção das palavras é importante. Lembra que palavras com vários significados podem confundir as crianças e que deve haver cautela no seu uso. A este propósito, refiro o exemplo da palavra “tecido”, que pode significar uma peça histológica ou o material de que é feita a nossa roupa. O autor lembra também que o uso de jargão médico pode causar dificuldades de comunicação, por isso deve ser evitado.
Outra questão abordada no artigo diz respeito ao desencontro entre o que o médico quer dizer e as necessidades de informação da criança. Assim, enquanto o médico quer explicar a doença do ponto de vista da sua causa e evolução, a criança pode estar mais preocupada em perceber como a doença vai alterar a sua vida. As crianças procuram a relevância pessoal da informação para perceberem de que forma é que a situação se aplica a si e ao seu quotidiano.
Por fim, de forma a reduzir a ansiedade e incerteza das crianças, Whaley refere que a doença deve ser colocada num contexto de normalidade, para que seja vista como um acontecimento natural na vida, que pode ser gerido e ultrapassado.
Como as crianças entendem informação de saúde
A ideia de que as crianças são como um livro em branco que precisa ser preenchido com informação de saúde, selecionada pelos adultos, torna a criança um ator passivo na sua própria saúde. Em 2016, Fairbrother e colaboradores, no seu artigo “Making health information meaningful: Children’s health literacy practices” questionaram esta visão e o procuraram perceber como as crianças usam a informação de saúde no seu dia a dia.
Tendo por base a definição de literacia em saúde de Nutbeam referida acima, as investigadoras realizaram entrevistas (em casa e nas escolas) e debates (nas escolas) a um conjunto de 53 crianças inglesas entre os 9 e 10 anos. O objetivo foi avaliar as perceções das crianças sobre alimentação no contexto do dia a dia e qual a relação por elas percebida entre comida e saúde. Os pais das crianças também foram entrevistados.
De acordo com este estudo, no que diz respeito ao acesso a informação de saúde, as crianças recebem conteúdos de uma variedade de fontes, tais como:
- Escola
- Família
- Meios de comunicação
- Publicidade
- Profissionais de saúde
- Campanhas de marketing social
De maneira geral, as crianças demonstraram preferência para informação mais visual, em oposição a textos ou informação dada oralmente. Por outro lado, desta multiplicidade de canais, as crianças recebem informação que consideram contraditória, por vezes demasiado simplificada e outras vezes excessivamente complexa.
Perante tais inconsistências, as crianças utilizam várias estratégias para entender as informações de saúde. Uma delas é aplicar a dicotomia natural (saudável)/ artificial (não saudável) ou bom/mau. Repare na forma como uma aluna explica porque as frutas e vegetais são saudáveis:
“Porque crescem nas árvores, não fizeram mais nada com eles, só lavaram, só apanharam das árvores ou debaixo da terra, se forem vegetais, e depois eles lavam-nos e fazem algumas coisas e lá vão elas.”
Outra estratégia que as crianças usaram foi colocar a informação no contexto da sua experiência para filtrar o que é significativo ou não para elas. Ficou notório que, recorrendo às suas vivências, as crianças tecem críticas à informação que recebem e mostram compreender que a informação não pode ser padronizada e pouco flexível, mas antes adaptada a cada situação. Tal é visível no seguinte comentário de uma aluna:
“Porque eles fazem um grande alarido que é bom comer fruta, mas nunca pensaram que às vezes precisas de comer um pouco de açúcar se queres ter energia.”
Para compreender melhor as informações de saúde as crianças também recorrem a conversas com os pais e com amigos, o que coloca a literacia em saúde como uma competência social que evolui na interação com outras pessoas.
As autoras concluem que as crianças não são como esponjas que absorvem passivamente a informação. Pelo contrário, têm as suas próprias ideias e visões e tecem críticas à informação que é dada de forma inflexível ou inconsistente. Procuram encaixar a informação no seu quotidiano, tornando-a relevante para elas. Assim, partindo deste conhecimento, as autoras recomendam que a educação para a saúde use abordagens mais holísticas e que entre em linha de conta com o que as crianças já sabem, para que estas façam parte do processo de co-criação de conhecimento de saúde.
Boas-práticas de literacia em saúde das crianças
Ao longo dos anos têm surgido estudos e perspetivas conceituais sobre a literacia em saúde das crianças. Porém, no vigésimo capítulo do livro International Handbook of Health Literacy, Pleasant e colaboradores começam por dizer que “três das mais relevantes revisões da literatura sobre literacia em saúde das crianças e adolescentes concordam que não sabemos o suficiente sobre literacia em saúde das crianças e adolescentes”.
Ao longo do capítulo são resumidos trabalhos que apresentam boas-práticas valiosas de intervenções de literacia em saúde para crianças e adolescentes, nomeadamente:
- Focar em mensagens encorajadoras, ao invés de mensagens críticas;
- Evitar estigmatizar;
- Integrar mensagens sobre a saúde dos pais na intervenção, sem perder o foco na saúde da criança, de forma a alavancar a influência que as crianças têm sobre o comportamento dos pais;
- Definir objetivos personalizados e atingíveis;
- Definir também objetivos qualitativos (ex: qualidade de vida);
- Focar na pessoa e não na doença;
- Reconhecer e resolver as barreiras existentes, nomeadamente baixa autoeficácia;
- Envolver os participantes no design da intervenção;
- Envolver a família de forma prática e colaborativa;
- Utilizar materiais fáceis de usar, divertidos e relevantes para o público-alvo.
O papel dos pais e das escolas
Por último lembro a importância que os pais e as escolas têm para os níveis de literacia em saúde das crianças. Não me vou debruçar sobre estes tópicos, mas recomendo a leitura do artigo “ Literacia em saúde parental: dos fundamentos às intervenções”, da Professora Ana Rita Goes, a respeito o papel dos pais. Para começar a explorar a relevância das escolas sugiro a consulta desta página do website do Center for Disease Control and Prevention, sobre escolas saudáveis, e o nosso Programa Nacional de Saúde Escolar.
Espero ter contribuído para o seu conhecimento sobre este assunto e para abrir novos caminhos de leitura e aprendizagem. Embora sejam necessários mais estudos e reflexões para sabermos comunicar de forma eficaz e efetiva junto de um grupo que representa o futuro da sociedade, com estas orientações estaremos mais perto de fazer a diferença na literacia em saúde das crianças.
The most effective means to improve health literacy is to ensure that education about health is part of the curriculum at all levels of education.
Nielsen-Bohlman et al. (2004)
Academia HealthWords
Quer melhorar a sua comunicação? Descubra os cursos baseados em evidência e nas boas práticas de comunicação em saúde.

Escrever sobre saúde para o público
Quer aprender a escrever informação de saúde que o público entende com facilidade? Então este curso é para si!
7 horas | E-learning

Como escrever com empatia
Quer saber como redigir informação de saúde mais empática? Este curso vai dizer-lhe como!
2 horas 30 minutos | E-learning

Materiais de saúde para todos
Um curso completo onde aprenderá as boas práticas para criar e avaliar materiais de saúde claros, apelativos e eficazes.
14 horas | Via Zoom ou presencial