Ciência da comunicação em saúde: a palavra como medicamento
18 junho 2021, PATRÍCIA RODRIGUES

Era 2006, tinha eu terminado o curso de Ciências Farmacêuticas há menos de um ano, quando me deparei com o livro “Mais Platão, menos Prozac”, de Lou Marinoff. Considerando o meu contexto académico, não é de surpreender que tive de olhar com atenção para confirmar que tinha lido bem: “Mais Platão e menos Prozac?! Ousado… vou levar!”.
Ler o livro foi como assistir a um confronto entre a Filosofia e as ciências exatas, que eram o meu pilar. Qual das duas tem a solução para a saúde? Pensava eu que o medicamento era a “bala mágica” para todos os males, mas estava errada. A palavra (ou a Filosofia, na perspetiva deste livro) tem um papel que não podemos ignorar.
Este livro foi um dos catalizadores da minha mudança profissional, uma mudança em que a comunicação é uma ferramenta terapêutica, um medicamento; e a palavra, o seu princípio ativo. Por isso, verdadeiramente, não houve alteração profissional, a ferramenta é que mudou. Essa feramenta, num sentido mais lato, é a Comunicação em Saúde, que é o tema deste artigo.
Da Filosofia à Ciência
Desde Pitágoras, que cunhou o termo “Filosofia”, que temos visto uma sucessiva ramificação de áreas de conhecimento, sendo os novos ramos cada vez mais especializados e pequenos. Surgiram novos domínios, especialidades, subespecialidades e assim por diante.
Se aplicarmos esta evolução ao estudo de uma árvore, acontece o seguinte: primeiro estudou-se a árvore como um todo, depois só os ramos, depois só as folhas, só as células, o núcleo, genes, moléculas… Neste percurso ganhamos a visão microscópica, mas perdemos a visão telescópica, a da árvore como um todo! Ou seja, a visão engavetada do conhecimento tem um problema: é limitada e incompleta.
Por isso existe também o movimento contrário, o da agregação de ciências para criar novos domínios. Isto verifica-se dentro de áreas de conhecimento, como por exemplo a Oncologia Pediátrica, em Medicina, mas também entre diferentes áreas, tal como acontece na Comunicação em Saúde, uma disciplina de estudo e prática multidisciplinar e multifacetada. Vamos saber mais sobre ela.
Comunicação em Saúde como uma ciência
A Comunicação em Saúde é a “ciência e a arte de usar a comunicação para promover a saúde e o bem-estar das pessoas e da população” (Society of Health Communication). Como referi, é uma prática multidisciplinar, pois agrega conhecimento de diferentes áreas, tais como:
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- Ciências Comportamentais
- Ciências da Comunicação
- Ciências da Saúde
- Ciências Sociais
- Marketing e Marketing Social
- Antropologia
Devido ao seu carácter multifacetado, esta ciência tem aplicação na comunicação interpessoal em contexto de saúde, em programas de educação para a saúde, em iniciativas de literacia em saúde, em intervenções de promoção da saúde, prevenção e gestão da doença, também na comunicação de risco, comunicação de crise, marketing social em saúde, entre outras áreas.
Aplicar o modelo científico à Comunicação em Saúde
Para além de ser multidisciplinar e multifacetada, a Comunicação em Saúde caracteriza-se por ser fundamentada na evidência científica. Isto significa que os programas de Comunicação em Saúde consideram:
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- A identificação e compreensão do problema;
- A análise da situação em que a comunicação ocorre;
- O conhecimento do público para quem comunicamos;
- A compreensão dos determinantes do comportamento a alterar, em caso disso;
- A escolha de métodos e técnicas fundamentadas em teorias e modelos de comunicação e de comportamento;
- A demonstração da eficácia das estratégias de comunicação;
- O procedimento de pré-teste das mensagens e materiais;
- A avaliação do resultado das campanhas.
Existem revistas científicas, livros e associações profissionais dedicadas ao estudo e divulgação da Comunicação em Saúde baseada na evidência.
Porém, apesar de termos este corpo de conhecimento ao nosso dispor, muitas campanhas de saúde estão apenas ancoradas em ideias criativas sem suporte em teorias, modelos e evidência da sua eficácia. A criatividade tem um espaço privilegiado na Comunicação em Saúde, é verdade, mas deve ser uma ferramenta, e não a estratégia base. Outras campanhas refletem ideias empíricas, como a noção de que o apelo ao medo leva às mudanças procuradas. Outras ainda limitam-se a transmitir informação complexa e que não responde às necessidades e interesses do público-alvo.
Assim, tal como o desenvolvimento de medicamentos aplica o método científico, caracterizado pelo rigor e precisão, a mesma abordagem deve ser usada na seleção e implementação de estratégias de Comunicação em Saúde. O princípio ISLAGIATT (it seemed like a good idea at the time) não tem espaço nesta abordagem científica à comunicação, cuja aplicação, como veremos de seguida, é de elevado benefício para o bem-estar e saúde de pessoas e comunidades.
A importância da Comunicação em Saúde
Com a pessoa no centro do processo, a Comunicação em Saúde é uma área robusta, estratégica e fundamental para quem pretende “influenciar, envolver, capacitar e apoiar indivíduos, comunidades, profissionais de saúde, doentes, políticos, organizações, grupos especiais e o público para que defendam, introduzam, adotem ou mantenham um comportamento social ou de saúde que irá, em última análise, melhorar os resultados de saúde das pessoas, comunidades e da população” (Renata Schiavo, 2014).
Assim, a Comunicação em Saúde fundamentada em evidência está dotada de ferramentas e estratégias com o potencial de alavancar as seguintes atividades:
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- Sensibilizar a população para determinados temas de saúde;
- Aumentar a literacia em saúde da população;
- Corrigir perceções erróneas de riscos de saúde;
- Influenciar decisões políticas de Saúde Pública;
- Aumentar o envolvimento da população em campanhas de saúde (ie. pessoa como agente de Saúde Pública);
- Melhorar a comunicação e relação entre profissional de saúde e paciente;
- Capacitar e empoderar o paciente, promovendo decisões informadas e participativas;
- Contribuir para a mudança e manutenção de comportamentos salutogénicos;
- Melhorar a adesão à terapêutica;
- Promover o uso seguro e eficaz do medicamento;
- Melhorar a navegação e a utilização dos serviços de saúde;
- Combater episódios de desinformação.
Contudo, para alcançarem este nível de sucesso, as estratégias de Comunicação em Saúde devem ser definidas e implementadas de uma forma sistemática, metódica e científica.
A palavra como medicamento
Perante um problema de saúde, o médico(a) faz um diagnóstico, prescreve um tratamento com base em informações válidas e avalia o resultado. O raciocínio da Comunicação em Saúde segue a mesma orientação: problema-diagnóstico-definição de estratégias de comunicação-avaliação. O resultado é uma comunicação clara, ajustada, relevante, credível, fundamentada na evidência e eficaz. Uma espécie de comprimido que é dado na dose certa, no formato ideal e que faz o que é necessário e importante para o púbico-alvo.
A corrente pandemia por COVID19 é um estudo de caso em tempo real para a Comunicação em Saúde. Concordará que a comunicação junto da população tem tido episódios erráticos, conflituosos e paternalistas, demasiadas vezes sem suporte de teorias ou demonstrações de eficácia. Quanto não teríamos beneficiado de melhores campanhas? Muito. Ainda temos um caminho para percorrer, que espero que seja facilitado pelas lições aprendidas. Este é apenas um exemplo, entre muitos, do impacto de abordagens científicas à Comunicação em Saúde, que podem ser verdadeiros “comprimidos” que evitam situações graves e protegem a saúde.
Assim, a Comunicação em Saúde atua a par das intervenções médicas e medicamentosas, favorecendo o seu efeito; mas também as pode evitar, sendo um veículo de promoção de saúde, prevenção de doença e de literacia em saúde.
De regresso à Filosofia
A ideia de que a sabedoria e a palavra podem fazer tanto pelas pessoas inspirou o meu percurso. Entusiasma-me, em particular, o contributo que a Comunicação em Saúde pode dar ao aumento da literacia em saúde e à mudança dos comportamentos em saúde, no sentido de estilos de vida saudáveis. Espero ter passado um pouco dessa inspiração a si, que lê este artigo. Quanto mais não seja, que leve consigo a noção de que a Comunicação em Saúde não é apenas uma competência, é um domínio de conhecimento baseado em evidência.
“I always dream of a pen that would be a syringe.“
Jacques Derrida
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