O que é a
literacia em saúde?
Publicação: 2 julho 2020 | Atualização: 8 agosto 2023
Tem ouvido falar em literacia em saúde, mas não sabe bem do que se trata? Então está no sítio certo para esclarecer essa dúvida.
O conceito de literacia em saúde surgiu por volta de 1970, ano que foram publicados os primeiros trabalhos sobre o tema. Numa perspetiva individual, a literacia em saúde fala sobre as competências necessárias para responder às exigências de saúde da atualidade. Numa perspetiva organizacional, aborda as estratégias que cada organização adota para facilitar a experiência do doente. Mas há muito mais para a saber, continue a ler!
Índice
Literacia em saúde no contexto de vida
O caso do Dinis
Durante vários dias, o Dinis sentiu uma dor na barriga, por isso decidiu ir ao médico. Na consulta, após fazer os exames necessários, o médico explicou ao Dinis o que se estava a passar: descreveu a doença, as suas consequências e o tratamento.
— Compreende o que lhe estou a dizer? — perguntou o médico.
— Sim sim… — responde Dinis.
O Dinis ouviu, não compreendeu bem, mas fingiu entender tudo, pois não queria atrapalhar o trabalho do médico.
Como parte do tratamento, o médico prescreveu alguns medicamentos. O Dinis não prestou muita atenção a como devia tomá-los, os medicamentos tinham nomes estranhos!
No final da consulta, o médico perguntou ao Dinis se tinha dúvidas, ao que o Dinis respondeu que não.
Já em casa, quando a família lhe perguntou o que dissera o médico, o Dinis não conseguiu explicar.

Esta história é-lhe familiar? Garantidamente, já todos estivemos na posição de não compreendermos bem a informação que recebemos, seja sobre saúde ou sobre outro assunto. A compreensão da informação é um aspeto importante na literacia em saúde, mas não é o único. Para além de compreender, é necessário colocar em prática esse conhecimento. Vamos ao exemplo da Clara.
O caso da Clara
Era o dia de aniversário da Clara.
— Fazer 40 anos é um momento importante… ou devia ser. — pensou.
Ainda estava a digerir a consulta do dia anterior com a nutricionista. Em 40 anos perdeu a conta ao número de vezes que tentou emagrecer.
Na consulta ficou decidido que iria iniciar uma dieta para perder peso, mas nas reflexões da manhã seguinte a motivação começou a desaparecer.
— Lá vou eu outra vez deixar de comer as coisas que gosto, passar vida a ler rótulos e fazer exercício físico sem me apetecer. Ah, e arranjar tempo para isto tudo! — refletiu.
Sentia-se perdida e desmotivada.
— Se calhar a nutricionista exagerou. Diabetes e aquelas coisas todas? Afinal só tenho 40 anos… Olha, vamos indo e vamos vendo. No ano novo penso nisso!
Se o Dinis não compreendeu bem o que se passava e o que tinha de fazer, a Clara compreendeu o que tinha de fazer, mas desvalorizou as consequências para a sua saúde, por isso não agiu. Em ambos os casos, mais literacia em saúde poderia ter feito toda a diferença.
O que é literacia?
Antes de definir literacia em saúde, importa clarificar o termo literacia. De acordo com o dicionário de língua portuguesa, literacia significa:
-
- Capacidade de ler e escrever;
- Capacidade de usar a leitura e a escrita como forma de adquirir conhecimentos, desenvolver as próprias potencialidades e participar ativamente na sociedade;
- Competência numa determinada área.
A palavra literacia tem sido aplicado em várias áreas de conhecimento, originando a literacia financeira, literacia digital, literacia em saúde, entre outras.
Então, o que é literacia em saúde?
A literacia em saúde é a capacidade de encontrar, compreender e usar a informação de saúde para tomar decisões do dia a dia que se relacionam com a saúde. Existem várias definições de literacia em saúde, formuladas por diferentes autores ou organizações de saúde. Apresento algumas na tabela abaixo.
Tabela. Definições de literacia em saúde
FONTE
DEFINIÇÃO
Nielsen-Bohlman et al.
(2004)
Capacidade de obter, processar e compreender informação básica sobre saúde e serviços, necessária para tomar decisões de saúde acertadas.
Kickbusch et al.
(2005)
Capacidade para tomar boas decisões de saúde no decorrer do dia a dia — em casa, na comunidade, no local de trabalho, nos serviços de saúde, no comércio e no contexto político. É uma estratégia crítica de capacitação para aumentar o controlo das pessoas sobre a sua saúde, sobre a sua capacidade para procurar informação e de assumir responsabilidades.
Comissão Europeia
(2007)
Capacidade de ler, filtrar e compreender a informação de saúde, a fim de formar uma opinião com conhecimento de causa.
Grau em que um indivíduo tem a capacidade de obter, comunicar, processar e compreender informação e serviços básicos de saúde para tomar boas decisões de saúde.
Conhecimento e competências pessoais que se acumulam através de atividades diárias, de interações sociais e de gerações. O conhecimento e as competências pessoais são mediados pelas estruturas organizacionais e disponibilidade de recursos que permitem que as pessoas acessem, entendam, analisem e usem informações e serviços para promover e manter boa saúde e bem-estar para a si e para os outros.
Literacia em saúde como competência individual
Como referi anteriormente, a literacia em saúde pode ser analisada do ponto de vista individual ou organizacional. No primeiro caso, reflete-se em ações aparentemente simples como ler e interpretar um rótulo alimentar, marcar uma consulta, tomar um medicamento ou gerir uma determinada condição de saúde.
Com mais literacia em saúde, o cidadão estará mais capacitado para encontrar a informação ou os serviços de que precisa, compreender a informação que encontra e decidir de forma autónoma e benéfica.
Existem vários instrumentos que avaliam a literacia em saúde do indivíduo. Exemplos são os questionários TOFHLA (Test of Functional Health Literacy in Adults), REALM (Rapid Estimate of Adult Literacy in Medicine), NVS (Newest Vital Sign), HALS (Health Activity Literacy Scale) ou HLS-EU (European Health Literacy Survey). Para Nutbeam, a literacia em saúde pode ser dividida em três níveis:
- Literacia funcional ou básica
Competências básicas suficientes obter informação de saúde e aplicar esse conhecimento num conjunto de ações recomendadas.
- Literacia interativa ou comunicativa
Competências mais avançadas que permitem extrair informação de saúde e compreender diferentes formas de comunicação, aplicar a nova informação a novas circunstâncias, interagir com outros e tomar decisões.
- Literacia crítica
Competências avançadas que podem ser utilizadas para fazer uma análise crítica da informação e utilizá-la para exercer maior controlo sobre as situações e eventos da vida com impacto na saúde.
Tomando o indivíduo como ponto de referência, é possível aumentar a literacia em saúde com ações educativas. Assim, a literacia em saúde pode ser vista como o resultado de campanhas de comunicação e de educação para a saúde. Contudo, não resulta apenas de tais intervenções: nos pontos seguintes abordarei outras perspetivas, que mostram também diferentes caminhos de promoção da literacia em saúde.
Literacia em saúde como resultado da interação com o meio
A literacia em saúde é uma competência dinâmica que evolui ao longo da vida e que resulta da interação de vários fatores. No seu modelo de literacia em saúde, Sørensen et al. salienta a influência de fatores pessoais, situacionais e sociais para a capacidade de procurar, encontrar, compreender, interpretar e utilizar a informação de saúde para tomar decisões. Alguns exemplos de tais fatores são:
Fatores pessoais
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- Idade
- Género
- Nível socioeconómico
Fatores situacionais
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- Apoio social
- Influências familiares
- Meios de comunicação
Fatores sociais e ambientais
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- Demografia
- Cultura
- Política
- Sistema de saúde
Assim, enquanto conceito sistémico, a literacia em saúde resulta da interação entre as características individuais e do meio, o que está patente na definição de literacia em saúde da Organização Mundial da Saúde: “o conhecimento e as competências pessoais são mediados pelas estruturas organizacionais e disponibilidade de recursos”.
Estas estruturas e recursos podem atuar como facilitadores ou barreiras de literacia em saúde.Por isso, não basta desenvolver ações dirigidas ao cidadão/doente, é necessário intervir também no sistema — de saúde, político, económico e social.
Literacia em saúde como um fator de risco
Como o desenvolvimento e aplicação de instrumentos de avaliação da literacia em saúde, tornou-se possível relacionar os níveis de literacia em saúde com os resultados de saúde, sendo hoje evidente a relação entre a baixa literacia em saúde e piores resultados e comportamentos de saúde. De acordo com a revisão sistemática realizada por Beckman et al., pessoas com baixos níveis de literacia em saúde tendem a:
-
- Realizar de menos exames de rastreio;
- Aderir menos a campanhas de vacinação;
- Errar na toma de medicamentos;
- Ter dificuldade em compreender mensagens de saúde;
- Adotar comportamentos prejudiciais para o próprio ou outros;
- Ir mais vezes ao serviço de urgência;
- Desenvolver doenças crónicas;
- Passar mais dias no hospital, quando hospitalizadas.
A literacia em saúde como fator de risco enquadra-se na prática clínica e no impacto no sistema de saúde. Neste âmbito, as intervenções deverão estar dirigidas para melhorar o acesso aos cuidados de saúde, melhorar as interações com os profissionais de saúde, ajustar a informação de saúde e criar organizações de saúde sensíveis ao tema da literacia em saúde.
A literacia em saúde é uma tarefa de todos
Como vimos até agora, existem muitas pessoas e instituições que podem intervir na literacia em saúde. De facto, promover a literacia em saúde é uma tarefa coletiva que convida à ação de:
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- Cidadãos
- Famílias
- Cuidadores
- Profissionais de saúde
- Administradores de hospitais/clínicas
- Decisores políticos
- Jornalistas
- Professores
Para referir alguns exemplos.
Voltado aos casos do início do artigo, uma comunicação mais simples por parte do médico e alguma informação escrita teria ajudado o Dinis. Já para a Clara, ações de âmbito mais alargado, como tornar os rótulos compreensíveis pelo público em geral e criar espaços exteriores para a prática de exercício físico, poderiam (e podem) ter impacto não só na literacia em saúde, mas também nos resultados de saúde.
O futuro da literacia em saúde em Portugal
Para terminar, menciono o recém-publicado Plano Nacional de Literacia em Saúde e Ciências do Comportamento 2023-2030 — Plano Estratégico.
Tem como objetivo geral “melhorar os níveis de Literacia em Saúde da população, através da ativação de comportamentos e do desenvolvimento de ecossistemas que promovam a saúde, o bem-estar e a qualidade de vida ao longo do ciclo de vida, bem como que assegurem a sustentabilidade do sistema de saúde” e está assente em seis eixos estratégicos:
-
- Boas Práticas em Literacia em Saúde
- Health Literacy Inteligence
- Comunicação
- Mobilização Social
- Ecossistemas Promotores de Saúde
- Políticas de Saúde
Pode ler o documento aqui.
“A informação deve ser ajustada à cultura, atitudes, e aos problemas e prioridades dos indivíduos a quem se destina. É necessária a contribuição do público-alvo para garantir que é utilizada a linguagem e a comunicação adequada e eficaz.”
Ilona Kickbusch
Imagens: Wikimedia, Kate Singleton, Rawpixel
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