4 passos para convencer uma instituição de saúde a usar linguagem clara e ser mais amiga da literacia em saúde
7 junho 2023 | Atualizado a 22 junho 2023 | PATRÍCIA RODRIGUES
Reconhece o valor da linguagem clara para o cuidado de saúde, mas não sabe como convencer colegas e chefias a usar esta técnica de comunicação? Neste artigo apresento algumas estratégias que o(a) podem ajudar.

Nos dias 23 e 24 de maio decorreu o Clear Writing for Europe, um evento organizado pela Comissão Europeia que reúne, de dois em dois anos, especialistas de diferentes contextos, com interesse e experiência em linguagem clara. No evento deste ano, subordinado ao tema “Supporting European democracy and transparency through clear language”, houve um denominador comum: a dificuldade de convencer os profissionais a mudar a forma tradicional de expor informação técnica, particularmente a que é dirigida ao público. O uso excessivo de jargão, a preferência pelas frases longas e o desajuste entre o nível de detalhe e os interesses da audiência são alguns hábitos da escrita técnica que extravasam — erradamente — para a escrita para o público.
Também eu encontro a mesma dificuldade e os mesmos velhos hábitos quando falo da linguagem clara no contexto da saúde. Foi esse motivo que o(a) trouxe a este artigo?
Ocorreu-me, então, sistematizar as estratégias que podem ajudar a implementar a linguagem clara numa instituição de saúde. Fiz um apanhado de táticas que tenho usado, que tenho encontrado na literatura e que ouvi no evento acima referido. Embora o contexto aqui seja a saúde, particularmente a comunicação com o cidadão, pode adaptar as propostas a outras áreas.
Trabalhe num hospital, centro de saúde, laboratório de análises, clínica privada ou farmácia, os quatro passos que a seguir apresento podem fazer a diferença na altura propor e defender a implementação esta técnica de comunicação no seu local de trabalho.
Índice
1º passo: reunir argumentos
Para propor esta mudança vai precisar de argumentos, ou seja, de evidência e dados que fundamentem a implementação da linguagem clara. Fiz algum desse trabalho por si nos pontos seguintes. Contudo, pode profundar as informações seguintes e, sobretudo, adaptá-las à instituição onde trabalha.
Estabelecer terreno comum – o que é a linguagem clara?
Uma vez que a expressão “linguagem clara” pode ser considerada autoexplicativa, é possível que as pessoas criem conceções erradas ou incompletas da mesma. Por isso, é importante esclarecer o que é esta técnica de comunicação e o que propõe, desta forma garante que todos estão a falar do mesmo.
Relembro a definição proposta pela Federação Internacional de Linguagem Clara: “uma comunicação está em linguagem clara quando o texto, a estrutura e o design são tão claros que o público-alvo consegue encontrar facilmente o que procura, compreender o que encontrou e usar essa informação.”
Sublinhar as vantagens para o doente — e para a organização
A linguagem clara é uma recomendação importante da Literacia em Saúde não só porque facilita o aumento de literacia em saúde como também diminui as exigências colocadas ao cidadão, particularmente aos que têm menos competências a este nível. Segundo o estudo mais recente, em Portugal, cerca de 30% das pessoas têm baixa literacia em saúde, ao que se associa mau uso dos serviços de saúde, piores estilos de vida, mais erros de medicação e maior mortalidade. Contudo, usar linguagem clara não irá beneficiar apenas este grupo. Como refere o Health Literacy Universal Precautions Toolkit, usar linguagem simples e acessível beneficia todas as pessoas que necessitam de informação e cuidados de saúde.
Além disso, num modelo de cuidado que se pretende cada vez mais centrado na pessoa, é crucial fornecer informação de saúde rigorosa e simples. Só assim conseguiremos incluir a pessoa nas decisões e capacitá-la a ser parte ativa na sua saúde.
Quanto a vantagens para a organização, os palestrantes do Clear Writing for Europe sublinharam a importância da linguagem clara na construção de relações de confiança com o cidadão, pois informação fácil de entender demonstra transparência, empatia e a motivação de ajudar. Foram também referido que a linguagem clara ajuda a combater a desinformação — se não formos nós a informar com um vocabulário simples, alguém o fará por nós, eventualmente com outras intenções. Acrescento ainda que esta técnica de comunicação pode evitar falhas na comunicação, otimizar processos e diminuir reclamações, erros e redundâncias. Como resultado, a produtividade da organização poderá aumentar, assim como a satisfação do cidadão.
Fazer uma lista com as instituições de renome que recomendam a linguagem clara
Uma estratégia que, a meu ver, tem bastante peso, é o facto de importantes organizações de saúde recomendarem a linguagem clara. Abaixo refiro algumas e os documentos onde encontra essas recomendações.
- Organização Mundial de Saúde (OMS)
O documento WHO Strategic Framework for effective Communications descreve as estratégias que a OMS adota na comunicação de informação, conselhos e orientações de saúde. Uma das orientações é muito taxativa: “Use linguagem clara”. Como justificação, é referido que a linguagem clara aumenta a compreensão da informação, aumenta a confiança na informação e facilita a adoção do comportamento desejado.
- European Medicine Agency (EMA)
Segundo o Regulamento dos Ensaios Clínicos em vigor na Europa, os resultados dos ensaios clínicos devem ser publicados num formato e linguagem acessíveis ao público em geral. Esta obrigação já é, por si, um forte argumento a favor da linguagem clara, mas a EMA decidiu ir mais longe: publicou um glossário que propõe uma descrição simples de termos médicos usados na informação sobre medicamentos. O documento chama-se EMA medical terms simplifier.
- Direção-Geral da Saúde (DGS)
No que respeita à linguagem clara, o Manual de Boas Práticas Literacia em Saúde – Capacitação dos Profissionais de Saúde propõe, por exemplo, “usar linguagem simples e formatos legíveis de forma a fornecer informação de saúde de forma clara”, “disponibilizar informações pertinentes, simples e claras” e ”utilizar linguagem simples, sem jargões técnicos”.
- Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ)
O documento Health Literacy Universal Precautions Toolkit foi elaborado por vários especialistas em Saúde Pública, literacia em saúde e comunicação em saúde. Sugere vários cuidados relacionados com a linguagem clara, tal como evitar linguagem médica, usar as palavras do doente, limitar e repetir conteúdos e usar imagens para auxiliar a compreensão. - American Medical Association
Para terminar esta lista de exemplos na saúde, menciono o manual Health Literacy: A Manual for Clinicians, desenvolvido com o propósito de aproximar a comunicação do médico da compreensão dos doentes, ou seja, da sua literacia em saúde. Este documento refere que usar linguagem simples e clara é a melhor forma de comunicar e que os médicos devem procurar usar linguagem não médica, assim como limitar a quantidade de informação.
A última referência vai para a recém-publicada norma ISO de linguagem clara (ISO 24495-1:2023), que define os princípios e as orientações para o desenvolvimento de documentos em linguagem clara. Aplica-se principalmente a informações que estejam na forma de texto, não sendo específica para a saúde. Contudo, é um avanço que beneficiará todos os setores onde é fundamental melhorar a comunicação. Pode obter mais informações aqui.
Preparar-se para as objeções
É importante que as pessoas vejam a linguagem clara como um facilitador, e não como uma pedra na engrenagem. Até lá, é possível que encontre objeções, pelo que é importante preparar-se para elas. Algumas das que ouço mais frequentemente são:
- Vamos simplificar demasiado.
- Não é possível usar a linguagem clara sem perder a precisão da informação.
- A linguagem clara é só para as pessoas com baixa literacia em saúde.
Escrevi um artigo sobre como responder a estas e outras objeções, a que chamei mitos de linguagem clara — pode consultá-lo aqui.
Uma das dificuldades que encontro, não sendo bem uma objeção, mas mais uma crença, é o facto das pessoas acreditarem que estão a fazer bem e que não há nada a melhorar. Estas, diria, serão as mais difíceis de convencer, pois tenderão a ignorar a sua proposta, considerando-a irrelevante à partida. Para contornar este obstáculo, tenho divulgado a evidência científica sobre o assunto, partilhado as boas-práticas que importantes organizações gizaram e sublinhado o papel da linguagem clara para a literacia em saúde. No passo 3 encontrará outras estratégias que também poderão ajudar a convencer os mais céticos, como editar materiais para mostrar o antes e o depois.
2º passo: criar parcerias
A implementação da linguagem clara não é uma tarefa para uma pessoa, mas para uma equipa. Reúna forças com entusiastas da área para conseguir fazer mais e mais rápido.
Criar um grupo de pessoas que apoiam a linguagem clara
Se várias pessoas da sua instituição têm interesse pela linguagem clara, literacia em saúde e (melhor) comunicação com o cidadão, juntem-se: criem uma equipa e reúnam esforços. Desta forma serão mais eficazes, não só a passar a mensagem, mas também a identificar oportunidades e a ultrapassar obstáculos.
Ter parceiros em departamentos-chave
Pode ser relevante — e até determinante — encontrar parceiros em departamentos-chave. Dependendo do organograma da sua instituição, falo, por exemplo, do departamento de qualidade, de recursos humanos, de formação ou departamento de segurança do doente.
Pense: onde preciso conquistar apoiantes para aumentar as probabilidades de sucesso? Onde é que a linguagem clara pode fazer toda a diferença? Vá ao encontro dessas pessoas e estabeleça pontes com esses importantes parceiros internos.
3º passo: construir um plano de ação
Antes de começar com iniciativas avulso, construa um plano de ação. Comece por identificar as necessidades e as práticas correntes; depois defina as ações a implementar e organize-as num calendário. Procure alocar tempo e fundos a iniciativas que poderão ter mais impacto, o que nem sempre é fácil de saber à priori, mas considere este critério na altura de estabelecer prioridades.
De seguida dou alguns exemplos de iniciativas que pode incluir no seu plano de ação.
Começar com um pequeno projeto
É possível que tenha de implementar a linguagem clara de “forma suave”. Assim, escolha um serviço/departamento ou um tema relevante, onde os défices de comunicação prejudiquem a instituição e onde que pode obter bons resultados. Por exemplo, se o serviço de cirurgia de ambulatório tem muitas cirurgias adiadas porque o doente não faz a preparação de forma correta, melhorar a informação e materiais fornecidos ao doente poderá mudar esse cenário e trazer grandes benefícios para o hospital e para o próprio doente.
Se o projeto for determinante para convencer a sua instituição a aprovar o uso de linguagem clara, procure algum indicador que lhe permita avaliar o impacto das alterações que vai fazer. Voltando ao exemplo acima, o seu indicador pode ser a diminuição do número de cirurgias adiadas. Acredite, esses resultados serão um trunfo valioso!
Sugerir alterações que são fáceis, mas fundamentais — para começar
Se já conhece a linguagem clara saberá que a lista de propostas é abrangente. Tentar mudar tudo de hoje para amanhã pode criar confusão e aumentar as resistências. Por isso, comece por sugerir alterações que, na sua opinião, serão facilmente aceites. À medida que os benefícios forem ficando mais evidentes, poderá sugerir outra alteração — e devagar chegará longe!
Dar ferramentas para que as pessoas consigam fazer esta mudança
Se queremos que as pessoas alterem algum hábito, é importante eliminar as barreiras que dificultam a adoção do novo comportamento. Já sugeri uma forma de o fazer (começar com mudanças fáceis) e agora proponho outra: preparar um manual/guia ou uma checklist de linguagem clara.
Naturalmente que será necessário oferecer ações de formação. Mas, além disso, é importante haver ferramentas para as pessoas colocarem em prática o que aprenderam com o mínimo de atrito.
Mostrar exemplos de antes e depois
Conhece a máxima “show, don’t tell”? É o objetivo desta estratégia, que foi também mencionada no Clear Writing for Europe.
Escolha um material da sua instituição, modifique-o segundo as orientações da linguagem clara e mostre o resultado. Desta forma passará da teoria à prática e ajudará as pessoas a compreenderem melhor o que é a linguagem clara.
Se quer tentar uma estratégia baseada na evidência, “show, don’t tell“ pode ser uma boa opção. De acordo com este trabalho, a edição de um material permitiu “aumentar a consciencialização dos médicos que revêm os materiais”, que passaram a ser dos maiores defensores da linguagem clara.
Criar um plano de comunicação
É importante incluir iniciativas de comunicação no seu plano de ação. Como vai dar a conhecer a linguagem clara na sua instituição? Vai criar posteres? Vai fazer uma newsletter? Dar um nome especial às iniciativas de linguagem clara? Vai definir um mês dedicado à sensibilização interna para esta temática? A este respeito, em outubro celebra-se o mês da literacia em saúde. Pode aproveitar esta boleia!
Incluir o cidadão
Não podemos falar de linguagem clara sem falar da audiência para a qual estamos a preparar a informação: o cidadão. Assim, é fundamental incluir membros do público-alvo nas suas iniciativas, ouvi-los, considerar o seu ponto de vista, as suas necessidades e dificuldades. Para começar, pode recolher a opinião dos doentes sobre os materiais já existentes.
4º passo: conquistar o apoio das lideranças
Implementar a linguagem clara numa instituição de saúde não é apenas uma mudança de procedimentos, é uma mudança cultural. Exige repensar a estratégia de comunicação a todas as frentes, tanto na informação escrita como oral, nos vários pontos de contacto. Para conseguir ser bem-sucedido(a) nesta missão, certamente terá de obter a luz verde da administração ou chefias da empresa onde trabalha. Para tal, utilize as estratégias mencionadas acima e documente o progresso alcançado, pois essa evidência permitirá iniciar a conversa, manter esforços e até alargá-los.
Por vezes a mudança ocorre da liderança para a restante equipa, outras vezes são as equipas que levam à mudança. Penso que, neste caso, tem de semear nos dois campos. Se, por um lado, poderá ser mais fácil conquistar os colegas, por outro, se a diretriz vier das chefias, será mais difícil de objetar. O importante é conseguir com que todos remem para o mesmo lado.
Nota final
A linguagem clara, tanto na comunicação escrita como na falada, ajuda a simplificar a complexidade científica que caracteriza a informação de saúde, evita mensagens ambíguas, facilita a mudança de comportamento, fortalece a literacia em saúde, apoia o cuidado centrado na pessoa e reforça confiança na instituição.
Sendo a adoção da linguagem clara uma mudança cultural, mais do que uma mera alteração de hábitos, é necessário ter uma abordagem estruturada e estratégica. Dessa forma, propus 4 passos para convencer uma instituição de saúde a usar linguagem clara e ser mais amiga da literacia em saúde, que são:
- Reunir argumentos
- Criar parcerias
- Construir um plano de ação
- Conquistar o apoio da liderança
Agora é lançar mãos à obra. Se precisar da minha ajuda, estou deste lado.
Boa sorte!
It always seems impossible until it is done.
Nelson Mandela